domingo, 11 de dezembro de 2016

Processo urgente vs processo cautelar

“Maximiano, sofrendo de doença oncológica, perante a demora da Caixa Geral de Aposentações em deferir o seu pedido de aposentação, solicita ao  TAF de Lisboa que condene aquela entidade administrativa a proceder à marcação de uma junta médica que examine o caso e, consequentemente, lhe conceda a aposentação”. (caso 5)

Perguntava-se, então, qual o meio processual que poderia tutelar mais efectivamente a pretensão de Maximiano. A resposta a esta questão, com base nos elementos enunciados no caso, será o objecto da presente publicação.

I.
Antes de nos adiantarmos a formular qualquer conclusão, cumpre, em nome de um rigor metodológico, analisar os termos em que o autor solicitou tutela jurisdicional.

O pedido: a marcação da junta médica.

O decreto-lei n.º 498/72, de 9 de dezembro, que prevê o Estatuto da Aposentação, atribui o direito de aposentação a subscritor(1) que, tendo pelo menos cinco anos de serviço(2), seja declarado em exame médico, absoluta e permanentemente incapaz para o exercício das suas funções (art.º 37º/2).

A atribuição do direito de aposentação consubstancia a prática de um ato administrativo, na medida em que se trata de uma definição unilateral de efeitos jurídicos, decorrente de normas jurídico-administrativas, numa situação individual e concreta. A entidade administrativa competente (a CGA), ao permitir a cessação justificada do contrato de trabalho (art.º 99º Estatuto) e a concessão de um direito a uma pensão mensal vitalícia (art.º 46º Estatuto), está a conformar unilateralmente a esfera jurídica de Maximiano (bem como a da entidade empregadora).

O requerimento do interessado dá início ao procedimento de aposentação (art.º 84º/1 Estatuto) e constitui a administração no dever legal de decidir sobre o mérito questão. Diz-nos o princípio da decisão que os órgãos da Administração Pública têm o dever de se pronunciar sobre todos os assuntos da sua competência que lhes sejam apresentados (art.º 13º/1 CPA). Na falta de disposição especial, o prazo é de 90 dias úteis (art.º 128º/1 CPA).

A questão de se saber se alguém é absoluta e permanentemente incapaz para o exercício das suas funções é essencialmente técnica, pelo que tem a administração da CGA de convocar uma junta médica: a junta delibera no sentido de concluir se os resultados apresentados no relatório médico (art. 89º/1, 90º/1 e 91º/2 Estatuto) se inscrevem no âmbito daquela situação, formulando um parecer para a tomada de decisão final, que caberá à administração da caixa (art.º 97º Estatuto, art.º 91º/2 CPA).

Embora a decisão final o seja, e negligenciando a questão da natureza jurídica do parecer(3), a marcação da junta médica traduz-se numa simples atuação administrativa. Entendemos não ser um ato que se destina a produzir efeitos numa situação individual e concreta, mas, sim, um ato que visa permitir o conhecimento ou a produção de efeitos de um outro ato, qualificável como verdadeiro ato administrativo(4).

Conclui-se, assim, que Maximiano pede ao TAF de Lisboa que condene a Caixa Geral de Aposentações na prática de uma simples atuação administrativa.


II

“A ação administrativa pode ser utilizada para obter a condenação da entidade competente à prática, dentro de determinado prazo, de um ato administrativo ilegalmente omitido...” (art.º 66º/1 do CPTA)

A marcação da junta médica não é efectivamente um ato administrativo, stricto sensu, mas é inegável a existência de um relação de acessoriedade em relação à atribuição do direito de aposentação ou sua rejeição. O objecto da condenação à prática do ato devido não seria a marcação da junta médica, mas o cumprimento do dever de decidir. Sendo certo que para tomar a decisão final a administração tem de marcar a junta médica. Neste sentido, admite-se a condenação da entidade competente à prática de um ato administrativo como via processual idónea a atingir a finalidade visada pelo autor.

O pressuposto que não se tem por verificado é o da ilegalidade da omissão. Nos termos do art.º 129º do CPA, a falta, no prazo legal, de decisão final sobre pretensão dirigida a órgão administrativo competente(5) constitui incumprimento do dever de decisão, conferindo ao interessado a possibilidade de utilizar os meios de tutela administrativa e jurisdicional adequados. Conforme se deduz do enunciado do caso, o prazo de 90 dias (art.º 128º/1 CPA) não foi ultrapassado, pelo que a omissão de decisão da administração não enforma qualquer ilegalidade. Não se admitindo, por esta razão, o recurso à condenação na prática do ato devido.

Mas, todavia, antes de se recorrer à intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, cumpre analisar o caso à luz da eventualidade da admissibilidade do referido meio processual, para efeitos da distinção entre aquela figura, que se insere no âmbito dos processos urgentes, e os processos cautelares.


“Alega que corre grave risco de vida por continuar a trabalhar, pelo que pede que estas decisões sejam adoptadas num prazo de 48 horas”. (caso 5)

Verifica-se aqui uma situação de periculum in mora. Atendendo ao facto de o processo (ou procedimento) se traduzir numa sucessão de atos, não se esgotando num só, e que a cada ato corresponde um momento temporal, podendo ser imediato ou deferido por um determinado período previamente determinado (prazo). Pode-se dar o caso de a demora inerente ao curso normal do processo ser susceptível de colocar em perigo a própria utilidade do mesmo.

Considerando que Maximiano, se continuar a trabalhar, corre risco de vida, dir-se-á que uma decisão de mérito da administração, tomada dentro do prazo legal, no sentido da atribuição do direito à aposentação, não terá qualquer efeito útil se entretanto este vier a falecer.

Pelas razões expostas, conclui-se que o juiz, para garantir a utilidade da sentença de condenação na prática do ato devido, pode admitir qualquer tipo de providência desde que seja adequada para atingir essa finalidade. Isto porque se entende que o elenco do art.º 112º/2 do CPTA não é taxativo: fala-se então num princípio de universalidade das providências admitidas(6). Maximiano poderia pedir, em sede de processo cautelar, a antecipação dos efeitos da sentença de condenação, o que é compatível com o carácter incerto da existência do direito à aposentação (e portanto, da verificação das condições de que ele depende), tendo em conta o carácter provisório da providência.

Ao que acresce que, por estar em causa a hipótese de verificação de um facto consumado na pendência do processo (a morte de Maximiano), o juiz pode, justificado pelo reconhecimento da existência de uma situação de especial urgência, decretar provisoriamente a providência requerida ou aquela que se julgue mais adequada, sem mais considerações, no prazo de 24 horas(7).

Pese embora a pertinência de todos estes argumentos, há que atentar na razão de ser da figura da providência cautelar, que como antecipação provisória de uma decisão judicial, se caracteriza por uma instrumentalidade face à ação principal: a providência só faz sentido se houver um processo principal, caso contrário há inclusive causa de caducidade.

No caso em apreço, a condenação da administração no cumprimento do dever de decidir, tinha como efeito a regulação definitiva da situação. A providência consumiria os efeitos da ação principal. Razão pela qual, mesmo que tivesse havido efectivamente um incumprimento do dever de decisão, este meio não seria idóneo a tutelar a pretensão de Maximiano.

Precisamente por não ser possível o decretamento provisório de um providência cautelar (art.º 109º/1, in fine CPTA), poderia ser requerida uma intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias. Com fundamento na inutilidade da decisão de mérito da administração se esta for tomada seguindo o decurso normal do procedimento administrativo, isto é, atendendo ao prazo legal de decisão. E atendendo a que o direito à aposentação apresenta uma estreita ligação com o princípio da dignidade da pessoa humana: não se pode exigir que, num Estado Social, um indivíduo que, apresente as mencionadas condições, tenha de trabalhar para prover pelo seu sustento, para garantir a sua sobrevivência. Seria indigno obrigar alguém a sacrificar a sua vida para ter a expectativa de vir a sobreviver. Além de que está também aqui em causa o próprio direito à vida.

Tratando-se de situação de especial urgência, consubstanciando a morte uma lesão irreversível de direito, liberdade e garantia, o juiz poderia, num prazo máximo de 48 horas, admitir a petição, sem que conceder à contraparte o prazo de sete dias para contestar (art.º 110º/3 CPTA).

Por último, na sequência do que foi referido relativamente à natureza não vinculativa do parecer, por não estarmos perante um ato estritamente vinculado, o tribunal não pode emitir sentença que produza os efeitos do ato devido (art.º 109º/3 CPTA).



(1) Para efeitos da presente discussão vamos supor que o autor está inscrito na CGA, já que o direito de aposentação depende da qualidade de subscritor (art.º 35º Estatuto).
(2) Idem.
(3) Não se pode entender o parecer como sendo um ato administrativo, na medida em que, embora sendo essencial para que a entidade competente para a decisão final tenha como verificada a condição de que depende o deferimento da pretensão, não é vinculativo. Pelo que não lhe cabe a ele a conformação da situação jurídica do particular.
(4) Marcelo Rebelo de Sousa, Direito Administrativo Geral tomo III, 2ª edição, p. 445).
(5) A apresentação de requerimento a órgão incompetente não é causa impeditiva para que a administração seja constituída no dever de decidir. Em nome de um princípio favor actione, o órgão incompetente tem o dever de suprir a deficiência da pretensão, enviando o documento por si recebido ao órgão titular da competência (art.º 41º/1 e 109º/2 CPA). Neste sentido, vide Mário Aroso de Almeida, Teoria Geral do Direito Administrativo, 2015, 2ª edição, pp. 106 e ss..
(6) Vieira de Andrade, Justiça Administrativa (Lições), pp. 308 e ss..
(7) Segundo Vieira de Andrade, por força do princípio da tutela judicial efectiva, o juiz pode decretar provisoriamente a providência cautelar sem necessidade de requerimento do interessado nesse sentido, pelo menos quando esteja em causa a lesão iminente é irreversível de direitos, liberdades e garantias. Idem.

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