sábado, 10 de dezembro de 2016

A intimidação para protecção dos direitos, liberdades e garantias

A tutela de direitos fundamentais, nomeadamente, de direitos, liberdades e garantias, faz-se, regra geral, contra actos originários do exercício de funções próprias do Estado. Deste modo, o art.º 18, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP), prevê que “Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”. Daqui decorre a imperatividade da sua concretização não só para as entidades públicas, mas igualmente para as entidades de direito privado. [1]



Actualmente, o Código do Procedimento Administrativo (doravante, CPTA) prevê como meio processual urgente da justiça administrativa a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias (doravante, intimação), que se encontra prevista no art.º 109 e seguintes do CPTA.

O art.º 109 do CPTA resulta de um processo de alterações legislativas e doutrinárias, relativamente ao tema da protecção de direitos fundamentais, sendo que o que presente art.º 20, n.º 5 da CRP prevê que “Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos”. Esta protecção acrescida justifica-se pela sua especial ligação destes direitos à dignidade da pessoa humana e pela consciência generalizada que, na sociedade actual, do perigo que determinadas actuações administrativas possam oferecer, em virtude da intensidade dessa actuação. [2]

Assim, nos termos do art.º 109 do CPTA esta acção deve ser exercida apenas nos casos em que esteja em causa, directa e imediatamente, o exercício do próprio direito, liberdade ou garantia ou direito análogo. [3] Daqui decorre que a subsidiariedade deste meio de tutela, que se encontra vocacionado para intervir como uma válvula de segurança nas situações em que, e apenas nestas, em que outras formas de processo do contencioso administrativo não se relevem aptas para tal protecção efectiva. [4Não pode consistir, deste modo, numa mera ligação instrumental com a realização dos direitos constitucionais, e não pode consistir numa mera invocação genérica de um direito, liberdade e garantia constitucional, sendo necessário uma descrição factual de ofensa efectiva que possa justificar a condenação da Administração através deste meio processual, de modo a adoptar uma conduta positiva ou negativa que permita assegurar o exercício desse direito. [5]

Actualmente, apresenta dois pressupostos a serem verificados:

  1. Que esteja em causa a lesão, ou a ameaça de lesão, de um direito, liberdade e garantia ou de um direito fundamental de natureza análoga, cuja protecção careça da emissão urgente de uma decisão de fundo;
  2. Que não seja possível ou suficiente o decretamento provisório de uma providência cautelar no âmbito de uma acção administrativa, comum ou especial.

Deste modo, podemos concluir pela verificação necessária de dois requisitos para o acesso a este meio processual do contencioso administrativo: o da indispensabilidade da decisão (que contém em si a urgência desta) e a subsidiariedade da intimação.

A urgência determina que só seja possível o recurso a esta via quando as vias normais não se mostrem possíveis ou suficientes para assegurar o exercício, em tempo útil, do direito, liberdade ou garantia invocado; por sua vez, a indispensabilidade implica a prova da alegação feita: o recorrente não se pode limitar a alegar a dificuldade ou impossibilidade de exercer o direito, devendo ainda provar que a única via para garantir esse exercício em tempo útil é através da intimação, sob pena de perda irreversível das faculdades de exercício daquele direito. Deve apresentar, portanto, uma alegação substancialmente fundamentada quanto às razões que impõem uma decisão célere. Ao não se verificar este requisito, terá de se concluir pela não verificação de uma situação de urgência tal que seja merecedora desta tutela.
Por outro lado, meros eventuais perigos de lesão podem, assim, e mediante exposto supra, ser resolvidos através de providências cautelares (subsidiariedade).

Deste modo, não se confunde com as providências cautelares: ainda que podendo ser igualmente céleres (tal como previstas no art.º 131 do CPTA, neste caso, no seu número 3), são meios instrumentais e acessórios dos processos principais, que se destinam a obstar ao periculum in mora que comprometeria o efeito útil da sentença a emitir no processo principal.

Em termos de legitimidade para acesso à tutela da intimidação, cabe distinguir: em relação à legitimidade ativa, esta é reconhecida a quem alegue a lesão de um direito, liberdade ou garantia no âmbito duma relação jurídico-administrativa, nomeadamente, nos termos do art.º 9, n.º 2 do CPTA. [6] [7]

Quanto à legitimidade passiva, esta compete à pessoa colectiva de direito público ou, no caso do Estado, do Ministério - art.º 10, n.º 2 do CPTA - ou os particulares no exercício de funções administrativas - art.º 10, n.º 7 do CPTA -  cuja actividade é alegadamente lesiva do direito, liberdade ou garantia alegado - art.º 10, n.º 1 do CPTA.

O tribunal competente, nos termos do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante, ETAF), será o tribunal administrativo de círculo (art.º 44, n.º 4 do ETAF) da circunscrição onde deva ter lugar o comportamento ou omissão pretendidos, nos termos do art.º 20, n.º 5 do CPTA. Cabe ainda chamar à atenção para o facto de que este pedido urgente não se encontra sujeito a qualquer prazo, pois estamos perante a análise de uma possível violação de direitos fundamentais (art.º 133, n.º 2 alínea d) do Código do Procedimento Administrativo).

BIBLIOGRAFIA
[1ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 5.ª Reimpressão, Almedina, 2015, p. 252.
[2ALMEIDA, Mário Aroso de, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2005, p. 538.
[3ALMEIDA, Mário Aroso de, e CADILHA, Carlos Alberto, Comentário de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2010, p. 723.
[4] AMADO, Carla Gomes, Pretexto, contexto e texto da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, 2003, p. 3 e ss.
[5ANDRADE, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa (Lições), 14.ª edição, Almedina, 2015, p. 231. 
[6SILVA, Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª edição, Almedina, 2009, p. 270.
[7Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 11.07.2013, processo n.º 10024/13, www.dgsi.pt.
______________________________________________
[1] Cf. CARLA GOMES AMADO, Pretexto, contexto e texto da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, 2003, p. 3.
[2] Cf. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (Lições), 2015, p. 231.
[3] O art.º 109, n.º 1 do CPTA estatui: “A intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias pode ser requerida quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adopção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento provisório de uma providência cautelar, segundo o disposto no artigo 131.º.”.
[4] Cf. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2005, p. 538.
[5] Cf. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA E CARLOS ALBERTO CADILHA, Comentário de Processo nos Tribunais Administrativos, 2010, p. 723.
[6] Cf. VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2009, p. 270, considera que “ (...) num Estado de Direito, o contencioso administrativo para além da função subjectiva, desempenha também uma função objectiva de tutela de legalidade e do interesse público (...) que é realizada de forma imediata pela intervenção do actor público e do actor popular.”
[7] Cf. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, 2015, p. 252, considera que “a legitimidade para a propositura deste tipo de ações assenta na alegação de titularidade de uma situação substantiva lesada, ou em risco de ser lesada, (...)”.

Sara Cordeiro
N.º 21443

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