domingo, 11 de dezembro de 2016

Análise do regime da tutela pré-cautelar

Segundo o disposto no n.º 1 do artigo 128º, após a apresentação da providência cautelar o ato administrativo é suspenso. Trata-se de uma suspensão automática, que não decorre de uma decisão judicial que se tenha pronunciado sobre o mérito da mesma, nem indicia uma aparência de ilegalidade do ato. No prazo de 15 dias a suspensão pode ser levantada através da emissão de uma resolução fundamentada que reconheça que a suspensão da execução seria gravemente prejudicial para o interesse público. Tudo isto sem que o tribunal se tenha ainda pronunciado sobre o mérito do pedido de suspensão da eficácia do ato administrativo.
O artigo 128º suscita várias dúvidas interpretativas. 
A primeira questão que se suscita passa pela determinação do momento a partir do qual a autoridade administrativa se encontra investida no dever de impedir que os serviços competentes ou os interessados procedam ou continuem a proceder à execução do ato em causa. Segundo o n.º1 do artigo 128  a proibição de executar o ato surge com a receção do duplicado do requerimento, no entanto questiona-se se esta tem de se efetuar por citação judicial ou se basta qualquer outro modo  de receção pela entidade requerida, designadamente por envio direto do requerente.
A maioria doutrinária segue o primeiro entendimento, com o argumento de que  só depois de proferido o despacho liminar de admissão da providência cautelar e efetuada a citação da entidade requerida pela secretaria judicial, se assegura que a providência cautelar foi liminarmente admitida.
Questiona-se também se a proibição de proceder à execução do ato administrativo decorre de uma decisão da autoridade administrativa ou se é uma decorrência da lei. A tomada de posição nesta questão tem consequência em sede de impugnabilidade. Com efeito, se, por um lado, entendermos que a proibição decorre de uma decisão administrativa, isto é, que se trata de um ato administrativo, este é impugnável, por outro lado, se entendermos que decorre ope legis, a não existe uma atuação administrativa impugnável, estaríamos perante uma informação aos serviços competentes e aos interessados dos efeitos decorrentes ope legis do pedido de suspensão de eficácia do ato administrativo, devendo a entidade requerida diligenciar no sentido de impedir a execução do ato.
A terceira dúvida que se suscita prende-se com o âmbito da suspensão, isto é, se abrange apenas aquilo que o ato administrativo impõe ou permite que seja diretamente realizado, ou se também abrange qualquer atividade consequente do ato administrativo ou tornada viável pela sua existência. Tendo em conta que o que se pretende com esta norma é impor o status quo até à emissão da resolução fundamentada ou decisão do tribunal, veda-se qualquer atuação relacionada com o ato administrativo e que apenas pudesse ocorrer por virtude da sua emissão.
 Tendo em conta as várias dúvidas existentes justificar-se-ia uma intervenção legislativa clarificadora, a qual foi propugnada pelo projeto de revisão do 128º do CPTA. Além de tais dúvidas, o regime do artigo 128º suscita várias críticas.
Recebido o duplicado a autoridade administrativa fica imediatamente impedida de executar os seus atos, assim sendo a primeira crítica prende-se com o facto de a suspensão automática potenciar o uso abusivo da suspensão, independentemente do valor jurídico da pretensão do requerente e dos danos causados ao interesse público e aos contrainteressados, aos quais, ainda que tenham interesses comparativamente mais dignos de tutela do que os do requerente, é recusado qualquer meio de defesa. Estes problemas não se suscitam se estivermos perante atos administrativos diretamente desfavoráveis ao requerente, em relações bilaterais e em que não seja posta em causa a proteção dos contrainteressados.
No entanto, nos casos excecionais em que existam razões de interesse público concreto, específico e urgente, a exigirem da autoridade administrativa a execução imediata dos atos administrativos, esta pode emitir uma resolução fundamentada que levante a suspensão, indicando as razões de interesse público concreto que a impeçam de aguardar a prolação da sentença.
Contudo, na prática a administração tem emitido a resolução invocando genericamente prejuízos para o interesse público. Mais, parece que devido à fixação de um prazo para a emissão de resolução fundamentada, esta tem sido emitida por cautela.
Devia de deixar de se submeter a prazo a resolução fundamentada, o que diminuiria a pressão para a sua emissão, com pouca ponderação e fundamentação, apenas de modo a evitar a preclusão do prazo. E impor-se à Administração um ónus mais exigente quanto às razões que a levam a invocar grave prejuízo para o interesse público na não execução imediata dos seus atos.
            Uma terceira crítica prende-se com o facto de o requerente da providência não poder impugnar a resolução fundamentada diretamente. Com efeito, ainda que considere, por exemplo, que foi emitida fora do prazo, por órgão incompetente ou que não está devidamente fundamentada, o requerente tem que esperar pelos atos de execução do ato administrativo suspendendo, que só conhecerá depois de terem sido praticados, tendo que os identificar e pedir a declaração de ineficácia, o que pode não ter utilidade prática se os atos se tiverem consumado.
Deveria então permitir-se que o requerente impugnasse diretamente a resolução fundamentada, pedindo a sua anulação urgente, de modo a que o deferimento desse pedido, pelo tribunal, clarificasse a invalidade da resolução fundamentada e consequentemente a invalidade dos atos praticados ou a praticar ao abrigo desta.
Por fim, o artigo 128º começa por proteger amplamente o requerente, ao permitir-lhe de forma quase instantânea opor-se à execução do ato impugnado, através da suspensão automática dos seus efeitos, mas tal proteção acaba por ser eliminada pela emissão de resolução fundamentada. Daqui decorrem dois efeitos adversos, pois por um lado, acaba por ser uma das partes, a autoridade administrativa, a decidir da execução ou não do ato administrativo em causa. Por outro lado, o regime do artigo 128º acarreta um prolongamento do tempo de decisão, pois em vez de o tribunal se centrar na apreciação do processo principal vai-se debruçar sobre a fundamentação da resolução fundamentada, acabando o tribunal a pronunciar-se várias vezes sobre os interesses em causa.
Assim sendo, o artigo em análise devia ser alterado de modo a que se consigam obter decisões efetivamente urgentes, o que só se consegue com a simplificação de formas processuais e com a eliminação da duplicação desnecessária de procedimentos. As alterações que se sugerem passam pela limitação do âmbito da suspensão da eficácia aos atos bilaterais e diretamente desfavoráveis para o destinatário ou, em alternativa, pela tomada em consideração dos interesses dos beneficiários do ato; supressão do prazo para emissão da resolução fundamentada, exigindo-se que quando a emita a autoridade administrativa explicite as razões de interesse público concreto e específico que impõem a execução imediata do ato suspendendo; e impugnação direta da resolução fundamentada.

                                                                                                  Carolina Guerra


ALMEIDA, Mário Aroso de, “Manual de Processo Administrativo”, 2ª Edição, Almedina, Coimbra, 2016.
DUARTE, Tiago, “Providências cautelares, suspensões automáticas e resoluções fundamentadas: pior a emenda do que o soneto?”, in Julgar, nº26, 2015, p.77

MAÇÃS, Fernanda, “A tutela pré-cautelar em revisão: breves reflexões”, Cadernos de Justiça Administrativa, nº106, 2014, p. 110


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