quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Condenação à prática do ato devido

A ação de condenação da Administração à prática do ato devido introduziu nos artigos 66º e seguintes do CPTA uma das manifestações de mudança do contencioso administrativo, na medida em que passou da mera anulação para a plena jurisdição. “Em Portugal, é a constituição de 1976 que vai obrigar o Contencioso Administrativo a “deitar-se no divã” de “psicanálise”, para enfrentar problemas “velhos” e “novos” e buscar a respetiva “cura” através da introdução de um contencioso de plena jurisdição.”[1] Com a revisão constitucional de 1997, no artigo 268/4CRP, vem expressamente regulado a possibilidade de determinação da prática de atos administrativos legalmente devidos, como referência ao princípio de tutela jurisdicional plena e efetiva dos direitos dos particulares face à Administração, que segundo o Professor Vasco Pereira da Silva, constitui o “novo centro” do Contencioso Administrativo.
Para o Professor Vasco Pereira da Silva, “foi na sequência deste longo “processo terapêutico”, em que o Contencioso Administrativo português tanto se “sentou” no “divã da Constituição”, como no “divã da Europa”, como experimentou ainda métodos de discussão e de “psicoterapia de grupo”, que surgiu a ação de condenação à prática de atos devidos, como modalidade de ação administrativa especial (artigos 66º e seguinte CPTA).”
Nos termos do artigo 66/1 CPTA, o pedido serve “para obter a condenação da entidade competente à prática, dentro de determinado prazo, de um ato administrativo ilegalmente omitido ou recusado”.
A pretensão do particular, prevista no art.67/2 CPTA, diz que o objeto deste tipo de ação não é o ato de indeferimento, mas sim da pretensão do particular. Para o Professor Vasco Pereira da Silva, o objeto do processo correspondente à pretensão do particular, é o mesmo que uma ação para defesa de interesses próprios, sendo a condenação da prática do ato devido um pedido imediato, decorrente de um direito subjetivo do sujeito que corresponde ao pedido mediato, que foi lesado pela omissão ou pela atuação ilegal da Administração, sendo este aspeto a causa de pedir.
Em 2015, com a reforma do Contencioso, a dicotomia entre ação administrativa e ação administrativa especial deixou de se verificar. Antes da reforma, a condenação à prática do ato era considerada uma ação administrativa especial, após a reforma e com o desaparecimento da dicotomia a condenação à prática de ato devido veio a ser designada por ação administrativa. A condenação à prática do ato devido veio substituir a figura do indeferimento tácito, previsto anteriormente no artigo 109º CPA.
O conceito de ato devido é indeterminado e discricionário, desde que a sua emissão seja legalmente obrigatória. O Professor Viera de Andrade entende que o ato devido “é, portanto, aquele ato administrativo que na perspetiva do autor, deveria ter sido emitido e não foi, quer tenha havido uma pura omissão ou uma recusa- e ainda quando tenha sido praticada um ato que não satisfaz ou não satisfaça integralmente uma pretensão.” Contrariamente entende o Professor Vasco Pereira da Silva que “esta visão do “objeto do processo” que, de acordo com a lógica tradicional, sobrevaloriza o pedido imediato relativamente ao mediato e à causa de pedir, não é suscetível de abarcar a integralidade do objeto da ação de condenação à prática de ato devido, além de se encontrar em desconformidade com as soluções legais”.
A redação de 2015, do artigo 37º CPTA faz referência expressa a atos devidos nos termos de vínculo contratualmente assumido, terminando com as dúvidas quanto a atos administrativos cuja prática representasse o cumprimento de um dever contratual. De acordo com o artigo 37/1 CPTA, a ação administrativa é “aplicável a todos os litígios sujeitos à jurisdição administrativa relativamente aos quais não esteja expressamente estabelecida uma regulação especial pelo CPTA ou por legislação avulsa”.[2]
O CPTA exige um procedimento prévio, da iniciativa do interessado, isto é, um requerimento dirigido ao órgão competente, com a pretensão de obter a prática de um ato administrativo (art.67/1 CPTA). Na alínea a) do art.67/1 CPTA, verifica-se o indeferimento tácito. O Professor Vasco Pereira da Silva sustenta que em caso de indeferimento tácito, há lugar na mesma a uma ação de condenação à prática do ato devido. Na alínea b), 1ª parte do mesmo artigo, verifica-se o indeferimento expresso e a 2ª parte determina a recusa de apreciação do requerimento. A recusa da Administração pode fundar-se em razões formais ou de competências: por entender que tinha o poder discricionário de não apreciação do pedido; por não se tratar de um verdadeiro requerimento; ou por não ter dever de decisão.”
Na revisão de 2015, acrescentaram-se três situações em que é possível pedir a condenação da Administração (artigo 67 CPTA). A primeira situação é a referente à alínea c) do artigo 67/1 CPTA, que diz respeito à situação de indeferimento parcial, dependente de prévio requerimento. A segunda situação é a do indeferimento indireto “quando a mera impugnação de uma decisão positiva não é suficiente para permitir uma satisfação integral dos direitos e interesses legalmente protegidos dos autores”, previsto nos termos do artigo 67/4 al. b) CPTA. E a terceira situação está prevista no artigo 67/4 al. a) CPTA, “quando não tenha sido cumprido o dever de emitir um ato administrativo que resultava diretamente da lei”.
A legitimidade para pedir a condenação à prática de um ato administrativo, pode ser ativa (art.68/1 CPTA) ou passiva (art.68/2 CPTA). Têm legitimidade ativa para apresentar este pedido, quem alegue ser titular de direitos ou interesses legalmente protegidos (art.68/1 al. a) CPTA); o Ministério Público, enquanto titular da ação popular (art.68/1 al. b) CPTA); as pessoas coletivas, públicas ou privadas (art.68/1 al. c) CPTA); e as demais pessoas e entidades referidas no art.9/2CPTA, a que correspondem interesses difusos (art.68/1 al. f) CPTA). Em 2015, acrescentam-se as alíneas d) e e) no art.68 CPTA, a legitimidade dos órgãos administrativos e dos presidentes dos órgãos colegiais para a apresentação desses pedidos. Na legitimidade passiva são obrigatoriamente demandados ao contrainteressados.
Em relação ao prazo de propositura da ação depende de ter havido inércia do órgão ou um indeferimento, à luz do art.69 CPTA. Nos termos do art.69/1 CPTA, em caso de omissão, o prazo é de um ano contado desde o termo do prazo legal estabelecido para a emissão do ato. Com a reforma de 2015, acrescentou-se no nº2 do art.69 CPTA, a recusa de apreciação do requerimento (partindo do princípio que não houve indeferimento), e o pedido de substituição de conteúdo estabelece-se um prazo igual ao fixado para a impugnação do ato pelos interessados. Também derivado da reforma de 2015, quando se esteja perante um ato nulo se deve sujeitar o pedido de condenação ao prazo de dois anos, contados da notificação do indeferimento, da recusa ou do ato cujo conteúdo que se pretende ver substituído (at.69/3 CPTA). Antes de 2015, havia quem entendesse que nesses casos não havia prazo para a ação e para outros que seria de aplicar o prazo de um ano, tratando-se a situação como se não houvesse ato.
Nos casos de inércia ou de recusa de apreciação, quando, na pendência do processo, seja praticado ou notificado um ato de indeferimento expresso, o interessado pode ampliar a causa de pedir, invocando novos fundamentos e oferecendo novos meios de prova (70º/1 e 2). Caso seja praticado, na pendência do processo, um ato que não satisfaça integralmente as pretensões do interessado, este pode optar por pedir, ou a condenação à prática de outro ato, ou a anulação ou declaração de nulidade do ato sobrevindo (70º/3). Antes de 2015, previa-se a cumulação de pedidos, pressupondo que a condenação pode não ser suficiente para satisfazer o interesse do particular, apesar de esta eliminar o indeferimento, pois que se trata de um ato que é do particular.
Nos termos do artigo 71.º CPTA, relativamente ao conteúdo da sentença, a medida da condenação corresponde ao âmbito da vinculação da Administração, ou mais concretamente, ao conteúdo do direito do particular. Assim, sempre que o particular seja titular de um direito a uma determinada conduta da Administração e quando esta não atuou quando era obrigatório, ou seja estando legalmente vinculada, o tribunal irá averiguar se houve uma preterição de uma vinculação legal. No entanto, como já ficou entendido, não esta sempre em causa a violação de um conteúdo legalmente pré-determinado, pode haver situações em que a Administração atua com base em poderes discricionários, em que nos termos do n.º 2 do artigo 71.º CPTA, o tribunal irá verificar o âmbito dos poderes discricionários exercidos, bem como as vinculações da Administração. Implica isto, uma análise concreta dos poderes da Administração, ou seja, se estamos perante um poder vinculado ou se estamos perante uma atuação com base em poderes discricionários, pois no que toca às decisões do tribunal, estas vão diferenciar-se no que toca aos âmbitos dos poderes referidos supra. Para o Professor Mário A. Almeida, o tribunal deve especificar quais os elementos vinculativos, deixando os restantes à margem de liberdade de escolha da Administração.

Em conclusão, termina-se com a ideia de que a Administração não poderia ser condenada pela prática dos seus atos, nem que os tribunais se poderiam intrometer na sua atividade, muito menos condenar a Administração. Com este regime, alargou-se o âmbito de proteção dos particulares, podendo estes, iniciar logo um processo contencioso da condenação da Administração à prática do ato, que foi omitido ou recusado, e não simular a anulação do ato em causa. O incumprimento do dever legal de decidir (a condenação da administração a praticar o ato devido) é um regime mais favorável aos particulares que vêm os seus direitos subjetivos legalmente tutelados a serem violados perante a inércia administrativa.



Bibliografia

Almeida, Mário Aroso, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2013
Andrade, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa, 14ª Edição, Almedina, 2015
Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª Edição, Almedina, 2009


Ana Catarina Gonçalves
Subturma 8; Nº 19461

[1] Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª Edição, Almedina, 2009
[2] Andrade, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa, 14º Edição, Almedina, 2015

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