domingo, 11 de dezembro de 2016

Breve Análise da Conceção de Pessoa Coletiva Pública

Uma pessoa coletiva é uma entidade destinada à prossecução de certos fins comuns e à qual o Direito atribui a qualidade de pessoa jurídica, ou seja, a capacidade de terem direitos e obrigações. 

Podem assumir diversas formas, dividindo‑se em pessoas coletivas de Direito privado e de Direito público. Distinguem‑se ainda consoante o respetivo fim (se de interesse público ou particular), o regime aplicável (direito administrativo ou direito privado), a sua criação (pelo poder público ou por privados). A melhor forma de determinar o carácter público ou privado de uma pessoa coletiva é verificar a verificação de vários desses critérios simultaneamente.

Sérvulo Correia aponta que a distinção, a ser operada, nunca deveria tomar como base a titularidade de uma capacidade de direito público ou de direito privado dado que, por um lado, todas as pessoas coletivas têm capacidade de direito privado e, por outro lado, é comum que pessoas de direito privado detenham capacidade de direito público.

Em matéria de legitimidade passiva, o regime regra consta do art. 10º nº 1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante CPTA), determinando que a mesma corresponde à contraparte na relação material controvertida tal como esta é configurada pelo autor. Deve o autor, portanto, demandar em juízo quem estiver colocado em posição contraposta à sua, no âmbito da relação material controvertida.

Em termos históricos, os processos de anulação de atos administrativos nasceram, no contencioso administrativo francês, como processos sem partes, em que a Administração figurava como “autoridade recorrida” e não enquanto entidade demandada, sendo este um dos “velhos traumas” apontados pelo Professor Vasco Pereira da Silva[1] em que se confundia administrar com julgar, estando a Administração em posição correspondente ao juiz a quo quando alguém interpusesse recurso para uma instância superior da decisão que ele proferiu[2].

Para suprir este trauma, o art. 10º nº 2 do CPTA identifica claramente a Administração enquanto parte, ao dispor que nas ações relativas a atos ou omissões administrativas “a parte demandada é a pessoa coletiva de Direito público ou, no caso do Estado, o ministério a cujos órgãos seja imputável o ato jurídico impugnado ou sobre cujos órgãos recaia o dever de praticar os atos jurídicos ou observar os comportamentos pretendidos”.

Suplanta-se o trauma através do princípio da igualdade das partes, mas o legislador peca ao optar pela inserção do conceito de “pessoa coletiva pública” que tem sido objeto de controvérsia.

Urge atender às alterações relevantes da Administração Pública no moderno Estado Pós-Social, transformações essas que conduziram a uma complexidade da organização administrativa de modo a que, não possamos hoje em dia, apontar apenas um único sujeito de imputação de condutas administrativas, o que torna censurável a opção do legislador pelo conceito de pessoa coletiva pública.

Estas transformações evidenciam a inclinação para a autonomização das autoridades administrativas, tendência acompanhada também pelo ordenamento jurídico porque se parte do entendimento de que estas são sujeitos de Direito, passíveis da titularidade de posições jurídicas ativas e também passivas, propensão também verificada nas normas constitucionais, as quais se referem tanto a pessoas coletivas, como a órgãos administrativos (arts.266º e seguintes da Constituição da República Portuguesa), e nos arts. 13º e seguintes do Código de Procedimento Administrativo, que se ocupam dos órgãos públicos, atribuindo-lhes importantes poderes de atuação nas relações administrativas.

É fundamental agora entender qual o objetivo da introdução deste conceito no art. 10º, nº 2 do CPTA. Esta inovação pretendia alcançar dois objetivos fundamentais: o primeiro, facilitar a determinação, pelo autor, da entidade com legitimidade passiva; e segundo, permitir a cumulação de pedidos que sigam diferentes formas de processo.

Relativamente ao primeiro, não parece clara a aplicação desta regra, na medida em que, pode tornar-se labiríntico identificar a entidade demandada. Contemplemos um exemplo: o caso de atos ou omissões imputáveis a órgãos ad hoc (júris de concursos) ou de estruturas constituídas para a prossecução de missões temporárias (equipas de missão)[3].

É, no entanto, importante referir que, para efeitos de aplicação de sanções pecuniárias compulsórias e de efetivação de responsabilidade disciplinar e criminal, terá de se desconsiderar a personalidade jurídica pública, uma vez que estas sanções afetam diretamente os titulares dos órgãos incumbidos da execução da sentença (arts.159º nº 1 b) e 169º nº1 do CPTA).

Apesar das críticas apontadas à preferência pela pessoa coletiva pública, não se poderá deixar de reconhecer que a solução legislativa adotada é suficientemente “aberta” para permitir resolver os problemas mencionados. O facto de o nº 4 do art. 10º do CPTA considerar como “regularmente proposta a ação quando, na petição inicial, tenha sido indicado como parte demandada o órgão que praticou o ato impugnado ou, perante o qual, tinha sido formulada a pretensão do interessado”, demonstra a “porta aberta” que se criou para a intervenção processual das autoridades administrativas e não apenas para as pessoas coletivas.

Na opinião do Professor Vasco Pereira da Silva[4] devemos analisar este artigo no sentido da consagração da regra alemã, segundo a qual deve estar em juízo a autoridade administrativa responsável pelo comportamento litigado.

Concluindo, esta reforma veio consagrar uma solução de preferência pela pessoa coletiva como sujeito processual; porém, veio fazê-lo através de uma feição aberta, por meio de normas que, na prática, permitem a intervenção processual das autoridades responsáveis pelos comportamentos administrativos em litígio, ainda que, consideremos que o fazem em “representação” da pessoa coletiva, sendo portanto a pessoa coletiva pública, uma forma de embelezamento do contencioso administrativo.


[1] VASCO PEREIRA DA SILVA, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, Almedina, 2008, p. 273.
[2] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “O novo regime do Processo nos Tribunais Administrativos”, p.47.
[3] VASCO PEREIRA DA SILVA, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, Almedina, 2008, pp. 274 ss.

[4] VASCO PEREIRA DA SILVA, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, Almedina, 2008, p.281.

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