sábado, 10 de dezembro de 2016

Arbitragem Administrativa e a intervenção do Ministério Público

A arbitragem consiste numa forma alternativa[1] de resolução de litígios[2] cuja foge aos parâmetros dos tribunais que integram a jurisdição pública. É de um negócio jurídico processual através do qual as partes atribuem legitimidade para resolver conflitos a tribunais sem natureza permanente, ou seja, extingue-se após a resolução do litígio - arbitragem não institucionalizada. Por oposição temos a arbitragem institucionalizada.
Além desta, existem outras distinções relativas à arbitragem, tais como: a arbitragem voluntária, que tem que ver com a vontade das partes. Esta, exige um requisito formal (convenção arbitral). Nesta sede, damos de caras logo com um problema. Desde já, no art. 181.º - …tribunal arbitral é constituído e funciona nos termos da lei sobre arbitragem voluntária, com as devidas adaptações”, ora, podemos observar que esta norma concede uma ampla margem de flexibilidade na fixação das regras a disciplinar o processo arbitral. O problema será então saber até onde se poderá estender esta flexibilidade processual. E, quais as “devidas adaptações” (conceito indeterminado) a fazer para além das já reguladas normativamente pelo legislador (exemplo o art.º 185).
Já a arbitragem necessária, não padece deste problema, uma vez que é imposta por lei, ficando as partes legalmente impedidas de recorrer aos tribunais judiciais. Os recursos a tribunais arbitrais necessários não obstam ao recurso de sentenças para os tribunais administrativos de círculo, sob pena de colocar em causa a tutela jurisdicional efectiva (268.º/4 CRP e 2º CPTA).
Parece ainda importante fazer uma contextualização, embora sumária, acerca da história da apreciação da validade dos actos administrativos pelos tribunais arbitrais.
Podemos começar por dizer que a arbitragem administrativa, não era vista com muito bons olhos. Talvez porque como a administração tem uma posição institucional concreta (que assenta no princípio da legalidade) então, o poder público mostrar-se-ia indisponível.  Só com a Constituição de 76 é que passaram a existir os tribunais arbitrais, embora lhes fosse vedada a apreciação da validade de actos administrativos.
Contudo, a reforma de 2002 do CPTA trouxe bastantes problemas e divergências, pelo que alongaria demasiado esta exposição. Simplificando, nesta revisão, o legislador pecou por confundir o poder de revogação como poder de disposição e matéria arbitrável[3].
Por fim, a última revisão do CPTA foi bastante inovadora e relevante, uma vez que procedeu de certa forma à definição e ao alargamento do objeto de apreciação dos tribunais arbitrais, no sentido de permitir o julgamento de “questões respeitantes à validade de actos administrativos, salvo determinação legal em contrário” – art. 180.º/1/c). Quanto a isto, a doutrina tem entendido que, à luz do princípio da separação de poderes, os tribunais arbitrais apenas podem apreciar a legalidade do acto, não sendo por isso possível a apreciação do mérito ou conveniência, art. 185.º/2.[4] 
Antes de entrar ainda na matéria do papel do MP no contencioso administrativo, parece importante referir qual é o seu estatuto jurídico-constitucional.
À luz do art. 110.º CRP, observamos que o MP não se insere como um dos órgãos de soberania. Tendo isto em conta, será que a representação do Estado poderá ser afectada em todas as jurisdições? O Professor Jorge Miranda defende que ”o caminho mais seguro consiste em vincular o conceito de órgão à própria matriz da soberania – poder próprio e originário do Estado”[5]. O Professor adianta que órgãos de soberania ligam-se necessária e primariamente à soberania como poder próprio e originário do Estado. Os restantes órgãos possuem uma qualidade e uma consistência diversa do poder.
A Professora Alexandra Leitão entende que a representação do Estado pelo MP é uma representação orgânica[6], no sentido de representar o tal poder originário e próprio do Estado em toda a jurisdição. Além disso, “O MP é um órgão do Estado, mas não é um órgão da pessoa coletiva Estado…”.
Quanto à representação do Estado pelo MP, refere Sérvulo Correia a respeito do art. 219.º CRP que “…a enunciação de uma competência de representação é extremamente genérica. O texto não diz quais as matérias a que respeitará a representação, nem quais as circunstâncias- nomeadamente os tipos de processo - em que este se desenvolverá”[7].
Mais problemas que poderão surgir, poderão ter que ver com dois arts. (artigo 5.º/1/a) do Estatuto do MP e o art. 11.º/1 CPTA) que poderão entrar em conflito, nomeadamente quanto à defesa da legalidade democrática e à representação do Estado (ambos objectivos prosseguidos pelo MP).
Apesar de o legislador não ter elencado as matérias que caberá a representação do Estado pelo MP, a interpretação do art 5.º do Estatuto do MP e do art. 11.º/1 CPTA leva a crer que a representação do Estado é obrigatória em todas as matérias, salvo se houver conflito de interesses.  Contudo, parece que a competência atribuída ao MP de representação do Estado, não abrange o processo arbitral[8]. Alguma doutrina entende que o fundamento para a intervenção do MP no processo arbitral provém do art. 219.º CRP, que se aplica quando se atribui competência ao MP para defender a legalidade democrática. Ora, independentemente do litígio jurídico-administrativo ser decidido em sede de jurisdição administrativo ou em sede arbitral, o papel desempenhado pelo MP é constitucionalmente imposto. Não vale então, o argumento de que os particulares e a Administração prescindiram, ao celebrarem a convenção de arbitragem, da intervenção do MP no processo, visto que esta faculdade não está na disponibilidade das partes.
Cabe agora perceber se a intervenção do MP é ou não essencial na resolução de litígios jurídico-administrativos. Para tal, é necessária uma análise da ratio das normas de competência atribuídas ao mesmo. À luz do art. 85.º CPTA, o MP poderá pronunciar-se sobre o mérito da causa, em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores referidos no art. 9.º/2. Ou seja, no contencioso administrativo, o MP actua como amicus curiae, defensor da legalidade democrática. De seguida, não menos importante, temos o art. 141º CPTA, que, prevê em sede de recursos jurisdicionais, a possibilidade do MP interpor recurso ordinário de uma decisão jurisdicional com violação de disposições ou princípios constitucionais ou legais.
Quanto às interposições de recurso obrigatório pelo MP, à luz do art. 72.º/3 da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, a decisão arbitral deverá ser comunicada ao mesmo. O Professor Galvão Teles entende que o MP só pode dar cumprimento ao dever de recorrer se tiver conhecimento da decisão. Significa isto, portanto, que o dever da comunicação está implicito na CRP. Já o Professor Jorge Miranda entende que, mesmo no caso de decisões arbitrais, se mantém a obrigatoriedade do recurso, devendo o presidente do tribunal arbitral ordenar a notificação do Ministério Público do tribunal da comarca da sentença arbitral.
Concluindo, podemos verificar que, apesar de o CPTA ter sofrido uma grande reforma, o regime ainda se demonstra pouco esclarecedor, uma vez que o legislador preferiu não se pronunciar acerca de matérias essenciais à resolução dos litígios jurídico-administrativos.
No entanto, o papel do MP mostra-se essencial na tutela de interesses e valores fundamentais do nosso ordenamento jurídico, pelo que apesar de a arbitragem assentar numa cultura de auto-responsabilidade e escolha pelas partes, a fim de se obter uma decisão célere e de qualidade, isso não significa que se exclua a intervenção do MP no processo arbitral. A natureza arbitral e a intervenção deste órgão não se revelam incompatíveis entre si, ao invés, a sua participação contribui para uma melhor qualidade da decisão, evitando o sacrifício de direitos fundamentais e/ou interesses essenciais do nosso sistema jurídico. 

[1] Gouveia, Mariana França, Curso de Resolução Alternativa de Litígios, Coimbra, Almedina, 2011, pp.18, 91.

[2] Caupers, João, A Arbitragem nos Litígios entre a Administração Pública e os Particulares, Cadernos de Justiça Administrativa nº 18, 1999, p. 3.

[3] Portocarrero, Marta, Contratos sobre Exercício dos Poderes Públicos, Transacção e Arbitragem, Universidade Católica Porto, 2015, pp. 316 ss…

[4] Neste sentido, Vasco M. Ramos: “…se o mérito da atuação administrativa não é judicialmente controlável, ele não pode ser objeto de apreciação judicial seja por tribunais administrativos seja por tribunais arbitrais…” in Arbitragem e Direito Público, AAFDL, 2015, pp. 251 ss…

[5] Miranda, Jorge, Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo II, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, pp. 248 ss…

[6] Neste sentido, Cláudia Santos Silva - O Ministério Público no atual contencioso administrativo português, Revista e-pública, n.º 7, 2016, pp. 171 ss....

[7] Correia, Sérvulo, A representação das pessoas colectivas públicas na Arbitragem Administrativa, in Separata de Estudos de Direito em Homenagem a Mário Raposo, Universidade Católica Editora, 2015, pp. 132 ss....

[8] Correia, Sérvulo, A representação das pessoas colectivas públicas na Arbitragem Administrativa, in Separata de Estudos de Direito em Homenagem a Mário Raposo, Universidade Católica Editora, 2015, pp. 113.


Cátia Vilas-Boas
Nº 21986

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