Arbitragem Administrativa e a intervenção do Ministério
Público
A arbitragem
consiste numa forma alternativa[1]
de resolução de litígios[2]
cuja foge aos parâmetros dos tribunais que integram a jurisdição pública. É de
um negócio jurídico processual através do qual as partes atribuem legitimidade
para resolver conflitos a tribunais sem natureza permanente, ou seja,
extingue-se após a resolução do litígio - arbitragem não institucionalizada.
Por oposição temos a arbitragem institucionalizada.
Além desta,
existem outras distinções relativas à arbitragem, tais como: a arbitragem
voluntária, que tem que ver com a vontade das partes. Esta, exige um requisito
formal (convenção arbitral). Nesta sede, damos de caras logo com um problema.
Desde já, no art. 181.º - “…tribunal
arbitral é constituído e funciona nos termos da lei sobre arbitragem voluntária,
com as devidas adaptações”, ora, podemos
observar que esta norma concede uma ampla margem de flexibilidade na fixação
das regras a disciplinar o processo arbitral. O problema será então saber até
onde se poderá estender esta flexibilidade processual. E, quais as “devidas adaptações”
(conceito indeterminado) a fazer para além das já reguladas normativamente pelo
legislador (exemplo o art.º 185).
Já a
arbitragem necessária, não padece deste problema, uma vez que é imposta por
lei, ficando as partes legalmente impedidas de recorrer aos tribunais
judiciais. Os recursos a tribunais arbitrais necessários não obstam ao recurso
de sentenças para os tribunais administrativos de círculo, sob pena de colocar
em causa a tutela jurisdicional efectiva (268.º/4 CRP e 2º CPTA).
Parece ainda importante
fazer uma contextualização, embora sumária, acerca da história da apreciação da
validade dos actos administrativos pelos tribunais arbitrais.
Podemos
começar por dizer que a arbitragem administrativa, não era vista com muito bons
olhos. Talvez porque como a administração tem uma posição institucional
concreta (que assenta no princípio da legalidade) então, o poder público
mostrar-se-ia indisponível. Só com a
Constituição de 76 é que passaram a existir os tribunais arbitrais, embora lhes
fosse vedada a apreciação da validade de actos administrativos.
Contudo, a
reforma de 2002 do CPTA trouxe bastantes problemas e divergências, pelo que
alongaria demasiado esta exposição. Simplificando, nesta revisão, o legislador
pecou por confundir o poder de revogação como poder de disposição e matéria
arbitrável[3].
Por fim, a
última revisão do CPTA foi bastante inovadora e relevante, uma vez que procedeu
de certa forma à definição e ao alargamento do objeto de apreciação dos
tribunais arbitrais, no sentido de permitir o julgamento de “questões
respeitantes à validade de actos administrativos, salvo determinação legal em
contrário” – art. 180.º/1/c). Quanto a isto, a doutrina tem entendido que, à
luz do princípio da separação de poderes, os tribunais arbitrais apenas podem
apreciar a legalidade do acto, não sendo por isso possível a apreciação do
mérito ou conveniência, art. 185.º/2.[4]
Antes de
entrar ainda na matéria do papel do MP no contencioso administrativo, parece
importante referir qual é o seu estatuto jurídico-constitucional.
À luz do art.
110.º CRP, observamos que o MP não se insere como um dos órgãos de soberania.
Tendo isto em conta, será que a representação do Estado poderá ser afectada em
todas as jurisdições? O Professor Jorge Miranda defende que ”o caminho mais
seguro consiste em vincular o conceito de órgão à própria matriz da soberania –
poder próprio e originário do Estado”[5].
O Professor adianta que órgãos de soberania ligam-se necessária e primariamente
à soberania como poder próprio e originário do Estado. Os restantes órgãos
possuem uma qualidade e uma consistência diversa do poder.
A Professora
Alexandra Leitão entende que a representação do Estado pelo MP é uma
representação orgânica[6],
no sentido de representar o tal poder originário e próprio do Estado em toda a
jurisdição. Além disso, “O MP é um órgão do Estado, mas não é um órgão da
pessoa coletiva Estado…”.
Quanto à
representação do Estado pelo MP, refere Sérvulo Correia a respeito do art.
219.º CRP que “…a enunciação de uma competência de representação é extremamente
genérica. O texto não diz quais as matérias a que respeitará a representação,
nem quais as circunstâncias- nomeadamente os tipos de processo - em que este se
desenvolverá”[7].
Mais problemas
que poderão surgir, poderão ter que ver com dois arts. (artigo 5.º/1/a) do
Estatuto do MP e o art. 11.º/1 CPTA) que poderão entrar em conflito,
nomeadamente quanto à defesa da legalidade democrática e à representação do
Estado (ambos objectivos prosseguidos pelo MP).
Apesar de o
legislador não ter elencado as matérias que caberá a representação do Estado
pelo MP, a interpretação do art 5.º do Estatuto do MP e do art. 11.º/1 CPTA leva
a crer que a representação do Estado é obrigatória em todas as matérias, salvo
se houver conflito de interesses. Contudo,
parece que a competência atribuída ao MP de representação do Estado, não
abrange o processo arbitral[8].
Alguma doutrina entende que o fundamento para a intervenção do MP no processo
arbitral provém do art. 219.º CRP, que se aplica quando se atribui competência
ao MP para defender a legalidade democrática. Ora, independentemente do litígio
jurídico-administrativo ser decidido em sede de jurisdição administrativo ou em
sede arbitral, o papel desempenhado pelo MP é constitucionalmente imposto. Não
vale então, o argumento de que os particulares e a Administração prescindiram,
ao celebrarem a convenção de arbitragem, da intervenção do MP no processo,
visto que esta faculdade não está na disponibilidade das partes.
Cabe agora
perceber se a intervenção do MP é ou não essencial na resolução de litígios
jurídico-administrativos. Para tal, é necessária uma análise da ratio das normas de competência atribuídas
ao mesmo. À luz do art. 85.º CPTA, o MP poderá pronunciar-se sobre o mérito da causa, em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum
dos valores referidos no art. 9.º/2. Ou seja, no contencioso administrativo, o MP
actua como amicus curiae, defensor da
legalidade democrática. De seguida, não menos importante, temos o art. 141º CPTA, que, prevê em sede de recursos jurisdicionais, a possibilidade do MP
interpor recurso ordinário de uma decisão jurisdicional com violação de disposições
ou princípios constitucionais ou legais.
Quanto às
interposições de recurso obrigatório pelo MP, à luz do art. 72.º/3 da Lei
Orgânica do Tribunal Constitucional, a decisão arbitral deverá ser comunicada
ao mesmo. O Professor Galvão Teles entende que o MP só pode dar cumprimento ao
dever de recorrer se tiver conhecimento da decisão. Significa isto, portanto,
que o dever da comunicação está implicito na CRP. Já o Professor Jorge Miranda entende
que, mesmo no caso de decisões arbitrais, se mantém a obrigatoriedade do
recurso, devendo o presidente do tribunal arbitral ordenar a notificação do
Ministério Público do tribunal da comarca da sentença arbitral.
Concluindo,
podemos verificar que, apesar de o CPTA ter sofrido uma grande reforma, o
regime ainda se demonstra pouco esclarecedor, uma vez que o legislador preferiu
não se pronunciar acerca de matérias essenciais à resolução dos litígios jurídico-administrativos.
No entanto, o
papel do MP mostra-se essencial na tutela de interesses e valores fundamentais
do nosso ordenamento jurídico, pelo que apesar de a arbitragem assentar numa
cultura de auto-responsabilidade e escolha pelas partes, a fim de se obter uma
decisão célere e de qualidade, isso não significa que se exclua a intervenção
do MP no processo arbitral. A natureza arbitral e a intervenção deste órgão não
se revelam incompatíveis entre si, ao invés, a sua participação contribui para
uma melhor qualidade da decisão, evitando o sacrifício de direitos fundamentais
e/ou interesses essenciais do nosso sistema jurídico.
[1] Gouveia, Mariana França, Curso de
Resolução Alternativa de Litígios, Coimbra, Almedina, 2011, pp.18, 91.
[2] Caupers, João, A Arbitragem nos Litígios
entre a Administração Pública e os Particulares, Cadernos de Justiça
Administrativa nº 18, 1999, p. 3.
[3] Portocarrero, Marta, Contratos sobre
Exercício dos Poderes Públicos, Transacção e Arbitragem, Universidade
Católica Porto, 2015, pp. 316 ss…
[4] Neste sentido, Vasco M. Ramos: “…se o mérito da atuação administrativa não é
judicialmente controlável, ele não pode ser objeto de apreciação judicial seja
por tribunais administrativos seja por tribunais arbitrais…” in Arbitragem e Direito Público, AAFDL,
2015, pp. 251 ss…
[5] Miranda, Jorge, Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo II, Coimbra
Editora, Coimbra, 2006, pp. 248 ss…
[6] Neste sentido, Cláudia Santos Silva - O
Ministério Público no atual contencioso administrativo português, Revista
e-pública, n.º 7, 2016, pp. 171 ss....
[7] Correia, Sérvulo, A representação das pessoas colectivas
públicas na Arbitragem Administrativa, in Separata de Estudos de Direito em
Homenagem a Mário Raposo, Universidade Católica Editora, 2015, pp. 132 ss....
[8] Correia, Sérvulo, A representação das pessoas colectivas públicas na Arbitragem Administrativa, in Separata de Estudos de Direito em Homenagem a Mário Raposo, Universidade Católica Editora, 2015, pp. 113.
Cátia Vilas-Boas
Nº 21986
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