domingo, 11 de dezembro de 2016

Artigo 128º, nº2: “A providência dentro da providência”

1.     Identificação e enquadramento da questão

      A questão que nos ocupa neste segundo comentário é a posição dos contrainteressados nas providências cautelares de suspensão de eficácia de atos administrativos.
      Em todo procedimento cautelar de suspensão judicial de eficácia de um ato administrativo existe, em tese e por princípio, um conflito de interesses, pois, por um lado, temos a Administração votada, nos termos legais, à realização/prossecução do interesse público e que pretende a eficácia imediata dos seus actos bem como assegurar a manutenção daquela eficácia e, por outro, temos o requerente cautelar que se opõem àquela eficácia imediata do ato mercê da perigosidade que a mesma representa ou pode representar em termos de consequências para os seus direitos e/ou interesses, sendo que esse conflito de interesses tanto pode apresentar-se como meramente bilateral como pode emergir com uma configuração trilateral por referência a direitos e/ou interesses de contrainteressados que saem afetados com a suspensão da eficácia do ato[1]. É esta última relação que nos interessa para efeito deste comentário. Procuraremos analisar o impacto desta providência na esfera dos contrainteressados e pôr em evidência a desproteção a que estes se encontram submetidos.
A proibição de execução de atos administrativos já se encontrava prevista no contencioso administrativo, correspondia, no essencial, à “suspensão provisória” prevista no revogado artigo 80.º da LPTA. Contudo, apenas com a reforma de 2004, passa a estar consagrada como um dos efeitos da providência cautelar específica de suspensão de eficácia de um ato administrativo[2]. Este mecanismo de tutela precautelar determina, logo que apresentado o requerimento de suspensão da eficácia de atos administrativos, um dever automático e imediato de pôr fim à execução do ato, impedindo os seus destinatários de retirar todos os efeitos associados a este de maneira a assegurar a manutenção do efeito útil à própria tutela cautelar e de molde a evitar que quando o julgador tome posição sobre aquele litígio essa sua decisão ainda faça sentido ou tenha utilidade à luz mormente dos direitos e interesses que o requerente queria ver acautelados. Esta imediata vinculação da administração à não execução do ato não significa, tal como nos dizem os professores PEDRO COSTA GONÇALVES e BERNARDO AZEVEDO[3], uma igual suspensão automática dos efeitos jurídico-administrativos do ato suspendendo.
Resulta do artigo 128º/1 e 2/CPTA, e no seguimento da doutrina do professor MÁRIO AROSO DE ALMEIDA[4], que a administração está vinculada a dois deveres, o primeiro consiste em, ela própria, ficar adstrita a não iniciar ou prosseguir com a execução do ato suspendido; o segundo traduz-se em impedir, com urgência, que os serviços competentes ou os interessados procedam ou continuem à execução do ato. Neste conceito de  incluem-se os contrainteressados. Assim, estes ficam igualmente adstritos a não iniciar ou continuar a execução dos atos, apesar de não decorrer diretamente da letra do artigo 128º, mas, por interpretação teleológica, tal dever poder ser extraído do nº 2 do mesmo preceito, uma vez que “não faz sentido que a dedução de um pedido cautelar de suspensão de eficácia tenha como, por regra, o efeito automático de impedir a imediata execução desses atos, e que o mesmo não suceda em relação a atos que se limitem a permitir o exercício para fins privados de atividades de natureza privada que não contendam com o interesse publico”[5].
             O mecanismo de tutela precautelar previsto no artigo 128.º/1 do CPTA subdivide-se em três momentos taxativamente previstos na lei: num primeiro momento, quando a “autoridade administrativa” recebe o duplicado do requerimento da providência cautelar, opera automaticamente (ope legis) a proibição de executar o ato administrativo suspendendo; num segundo momento, a entidade administrativa pode levantar essa proibição através da emissão de uma resolução fundamentada, na qual reconheça o grave prejuízo para o interesse público no deferimento da execução do ato; e num terceiro momento, o requerente da providência pode pedir ao tribunal que declare a ineficácia dos atos de execução do ato suspendendo, restabelecendo, em certa medida, a proibição de execução do ato[6]. Tendo em conta isto, a execução do ato administrativo tem-se por indevida sempre e quando praticado depois do requerimento de suspensão sem emissão atempada da resolução, uma vez que este não pode funcionar como fundamentação a posteriori dos atos (ou operações materiais) de execução, mas antes é pressuposto prévio da prática de tais atos, já que só com a emissão da resolução fundamentada pode a Administração levantar a proibição legal de executar o ato (Ac. TCAS, proc. nº 11302/14, de 09-10-2014, relatado por ESPERANÇA MEALHA). A execução é igualmente indevida quando tenha sido emitida previamente resolução fundamentada para justificar a execução da mesma, o tribunal vier a julgar improcedente ou ilegítimos os fundamentos invocados na resolução[7].
             A proibição de executar que recai sobre a administração pode resultar da sua iniciativa espontânea, mas também pode apresentar-se como uma consequência de um despacho do tribunal[8]. Tanto num caso como noutro a proibição constitui uma decisão de carater autoritária, unilateral e inovadora “em direta e imediata execução da lei”, que, por se apresentar como decisões administrativa revestida de efeitos externos e dotada de uma capacidade lesiva autónoma dos direitos e interesses legalmente protegidos dos seus destinatários, se devem ter como passiveis de impugnação junto da jurisdição administrativa [9].
            

2.     A natureza dos atos contidos no artigo 128º, nº2

             Estão aqui em causa atos administrativos em sentido estrito, adotados por sujeitos do direito administrativo ao abrigo de normas de direito público com o objetivo de definir, de forma unilateral, autoritária e inovadora, os efeitos jurídicos externos positivos ou negativos de uma dada situação individual e concreta. Estão em causa, portanto, atos secundários ou de 2ºgrau suscetíveis de suspenderem a eficácia dos atos primários, privando os seus destinatários do direito de beneficiarem da sua eficácia jurídica favorável[10].

3.     A constitucionalidade da afetação da posição dos contrainteressados
            
             Os efeitos de uma atuação da administração ao abrigo do artigo 128º têm o alcance de provocar lesões nos direitos e interesses legalmente protegidos dos contrainteressados levando a que se equacione a sua compatibilidade com a Constituição bem como a unidade do sistema legal previsto para a tutela cautelar.
             Segundo ELIZABETH FERNANDEZ[11], o artigo 128º, nº2 do CPTA é inconstitucional por violação da garantia fundamental (art.20º e 268º/CRP) de um processo equitativo para todas as partes, ao mesmo tempo que se mostra incompatível com a unidade do sistema legal previsto para a tutela cautelar. 
             A proibição de executar o ato administrativo à luz do artigo 128º, nº2, é incompatível com o sistema de tutela cautelar estabelecido no CPTA (cfr. Artigos 120º/2 e 3, 124º,125º,126º,131º e 132º) que assenta, justamente, na preocupação de garantir a ponderação material e a articulação processual dos interesses contrastante dos intervenientes no processo[12], uma vez que permite, através de um mero ato burocrático de citação, a obtenção de um efeito antecipatório para o qual o legislador exige claramente o fumus boni iuris[13].
             Outra questão levantada pelo cumprimento do comando do nº 2 do artigo 128º é a da sua compatibilidade com a Constituição da Republica. Este preceito coloca o contrainteressado, beneficiário do ato suspendendo, numa posição menos favorável, inibindo-o de executar ou praticar qualquer ato de execução do ato administrativo. O desfasamento entre a sua posição e a do requerente torna-se patente, sobretudo, se tivermos em consideração que a este ultima é atribuído o poder de fazer valer o direito à suspensão do ato administrativo em termos absoluto, sem que se atribua ao contrainteressado algum mecanismo processual de reação ao efeito suspensivo para a defesa dos seus direitos e interesses que podem ser superiores aos que o requerente pretende acautelar [14]. Uma tal desproporção também é patente quando confrontamos a posição da administração com a dos contrainteressados. Como nos diz MÁRIO AROSO DE ALMEIDA[15], “o artigo 128º coloca os contrainteressados numa posição mais gravosas do que o interesse público, na medida em que permite a aquela levantar a proibição de executar por razões de interesse público, enquanto não reconhece poder equivalente aos contrainteressados, em defesa dos seus interesses privados”. De entre as duas situações apenas a primeira viola o princípio da tutela jurisdiciona efetiva, na medida em que, no último caso, a diferenciação de posições, por assentar na necessidade de privilegiar a proteção do interesse publico não se mostrar arbitrária. Na primeira hipótese há uma clara violação do principio da tutela jurisdicional efetiva, mais concretamente, do subprincípio da equitatividade, uma vez que, ao mesmo tempo que atribui ao requerente da providência, em abstrato e à margem de qualquer justiça material, a prevalência sistemática e automática dos seus interesses, veda ao contrainteressado o direito de ser ouvido e de exercer o direito do contraditório de maneira a poder pronunciar-se sobre as razoes de facto e de direito e relativamente à solução perfilhada pelo juiz em cada situação[16].

4.    Sentido útil a atribuir ao artigo 128º, nº2

             Como acima referimos, esta norma está ferida, tal como defendem GOMES CANOTILHO, VITAL MOREIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES e BERNARDO AZEVEDO[17], de uma inconstitucionalidade material por violação dos artigos 20º e 268º da Constituição da Republica.
             Para PEDRO COSTA GONÇALVES e BERNARDO AZEVEDO[18] o ato administrativo que efetivar a aplicação do artigo 128º/2 é inválido por falta de base legal. Do outro lado da balança temos a posição de ELIZABETH FERNANDEZ que pugna pelo aproveitamento da norma, posição que nos parece a mais adequada. Recorrendo à doutrina mais restritiva defendida no âmbito processual civil em torno da providência cautelar de suspensão de deliberação social, faz uma contraposição entre atos de execução do ato administrativo e os atos de execução do direito subjetivo concedido por aquele. Assim, não pode recair sobre os atos de execução, praticados ao abrigo do direito subjetivo, a proibição do artigo 128º. Contudo, a autora entende que os contrainteressados, assim como a administração e os seus serviços, não estão impedidos de atuar, mas se o fizessem estariam a agir por sua conta e riscos, sendo responsáveis pelos danos que o início e a suspensão da execução dos atos venham a causar. Além do mais se os atos de execução estiverem quase concluídos, fica-lhes vedado a possibilidade de invocar, com êxito, a inutilidade superveniente da lide cautelar ou a ponderação de custos e benéficos[19].
             Uma solução que me parece que devolveria algum equilíbrio ao processo e evitaria a utilização abusiva da providência cautelar de suspensão do ato passaria por impor ao requerente ou a administração, consoante os casos, o dever de colocar o contrainteressado na situação em que estaria se a suspensão não tivesse sido declarada. Sempre que o requerente atue com litigância de ma fé, deve ser obrigada a compensar o contrainteressado e o mesmo deveria ser imposto.

Ludimila Agostinho Sanca
Nº 24205; ST8




[1] Ac. TCAN, proc. nº 01312/05.2BEBRG-C de 04-10-2007 ( relatado POR CARLOS LUÍS MEDEIROS DE CARVALHO). Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/a10cb5082dc606f9802565f600569da6/4153efd7a9ea96938025737000376cec?OpenDocument
[2] FERNANDEZ, Elizabeth, Revisando o art.128º. nº2 do CPTA: agora, na perspetiva dos contrainteressados, CEJUR, 2011, p. 11. In Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 90
[3] GONÇALVES, Pedro Costa; AZEVEDO, Bernardo, Impugnabilidade dos atos praticados ao abrigo do art.128º, 2, do CPTA e inconstitucionalidade da norma habilitante, CEJUR, 2011, p. 4. In Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 90 Disponível em: http://www.mlgts.pt/xms/files/Publicacoes/Artigos/2011/CJA_n.o90_Impugnabilidade_actos_praticados_art._128.pdf
[4] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de processo administrativo,2ª Edição, Almedina, 2016, pp 440
[5] ALMEIDA, Mário Aroso de, Op cit pp. 440
[6] Ac. TCAS, proc. nº 11302/14, de 09-10-2014, relatado por ESPERANÇA MEALHA. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/4d74e3524d0c48b780257d78004c96b1?OpenDocument
[7] FERNANDEZ, Elizabeth, op cit p.11
[8]GONÇALVES, Pedro Costa; AZEVEDO, Bernardo, op cit p. 4

[10] GONÇALVES, Pedro Costa; AZEVEDO, Bernardo, op cit p. 5
[11] FERNANDEZ, Elizabeth, op cit p.14-15
[12] GONÇALVES, Pedro Costa; AZEVEDO, Bernardo, op cit p. 8
[13] FERNANDEZ, Elizabeth, op cit p.14-15
[14] GONÇALVES, Pedro Costa; AZEVEDO, Bernardo, op cit p. 8
[15] ALMEIDA, Mário Aroso de, Op cit pp. 441
[16] GONÇALVES, Pedro Costa; AZEVEDO, Bernardo, op cit p. 9

[18] GONÇALVES, Pedro Costa; AZEVEDO, Bernardo, op cit p. 10
[19] FERNANDEZ, Elizabeth, op cit p.14-17

Sem comentários:

Enviar um comentário