quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Alterações ao Processo Administrativo: um ano de mudanças

Decorre um ano desde que foram efetuadas alterações substanciais ao processo administrativo. O Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro de 2015, trouxe uma revisão necessária do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA). O diploma procedeu também a uma harmonização da legislação em consonância com as alterações ao CPTA, efetuando mudanças pontuais a diversos diplomas avulsos que disciplinam a matéria processual administrativa ou conexos com a mesma, nomeadamente, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), o Código dos Contratos Públicos (CCP), o Regime Jurídico da Tutela Administrativa (RJTA), o Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE), a Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), a Lei de Participação Procedimental e de Ação Popular (LPPAP) e, finalmente, a Lei de Acesso à Informação sobre Ambiente (LAIA).

Esta revisão do CPTA veio complementar a recente reforma do Código do Procedimento Administrativo (CPA), ocorrida em janeiro de 2015 e, por outro lado, harmonizar o CPTA com a reforma de fundo de que foi objeto o Código de Processo Civil (CPC) em 2013.

Entre as alterações significativas impostas pela entrada em vigor deste diploma, no término de 2015, destacam-se:
  • As alterações estruturais em relação ao modelo herdado de 2002-2004, traduzindo-se na eliminação da bipartição entre ação administrativa comum e administrativa especial, inserindo todos os processos não urgentes num só tipo de ação – a ação administrativa. Assim, desde então existe apenas distinção entre processos não urgentes e processos urgentes. Os processos urgentes serão, potencialmente, os relacionados com (I) contencioso eleitoral, (II) procedimento de massa, (III) contencioso pré-contratual, (IV) intimação para a prestação de informações, consulta de documentos ou passagem de certidões, (V) intimação para a defesa de direitos, liberdades e garantias e (VI) providências cautelares. Pelo contrário, serão considerados processos incluídos na ação administrativa, os relacionados com (I) impugnação de atos administrativos, (II) condenação à prática de atos administrativos devidos, (III) condenação à não emissão de atos administrativos, (IV) impugnação de normas, (V) condenação à emissão de normas devidas, (VI) reconhecimento de situações jurídicas subjetivas, (VII) reconhecimento de qualidades ou do preenchimento de condições, (VIII) condenação à adoção ou abstenção de comportamentos, (IX) condenação da Administração à adoção das condutas necessárias ao restabelecimento de direitos ou interesses violados, incluindo em situações de via de facto, desprovidas de título que as legitime, (X) condenação da Administração ao cumprimento de deveres de prestar, (XI) responsabilidade civil da Administração, (XII) interpretação, validade ou execução de contratos, (XIII) a restituição do enriquecimento sem causa e (XIV) relações jurídicas entre entidades administrativas. Pôs-se então fim à dualidade de tramitações, assente na previsão de um modelo específico para as ações sobre atos e regulamentos (ação administrativa especial) e na remissão para a lei processual civil quanto a todas as demais ações (ação administrativa comum).
  • A agilização do novo regime do contencioso de impugnação de normas: simplificação e clarificação, nomeadamente no que respeita às situações de dedução do incidente da invalidade de normas regulamentares, em processos cujo objeto principal não lhes diz respeito. Importa referir também a articulação do processo impugnatório com as causas e efeitos de anulação e revogação previstos no CPA (artigos 64.º e 65.º).
  • A consagração de um modelo unitário de tramitação dos processos não urgentes: existência de um único modelo de tramitação para todos os processos não urgentes do contencioso administrativo, correspondendo ao da anterior ação administrativa especial, com algumas alterações, à qual foi dada a designação de «ação administrativa» (tendo sido eliminada a anterior ação administrativa comum). Demonstra-se aqui uma certa rutura com as linhas de pensamento mais recentes do contencioso administrativo português, no entanto creio que se deve salientar esta medida visto que permitiu existir uma maior simplificação do processos não urgentes.
  • As alterações ao contencioso pré-contratual urgente: foi alargado o âmbito aplicativo do contencioso pré-contratual urgente, de modo a abranger neste, o contencioso relativo à formação de todos os tipos contratuais compreendidos pelo âmbito aplicativo das diretivas da União Europeia em matéria de contratação pública. Refira-se que com o propósito de proceder à transposição das Diretivas Recursos, deu-se a consagração da previsão do efeito suspensivo automático da impugnação dos atos de adjudicação e introduzindo-se também um novo regime de adoção de medidas provisórias. Um dos principais efeitos destas alterações é a suspensão automática dos efeitos dos atos pré-contratuais impugnados e do contrato, se já celebrado, ainda que com possibilidade de afastamento por decisão do juiz quando a entidade demandada ou os contrainteressados invoquem grave prejuízo para o interesse público ou desproporção face aos demais interesses envolvidos (artigo 103.º-A CPTA). Importante ainda salientar a possibilidade de adoção de medidas provisórias em processos que não tenham por objeto atos de adjudicação (artigo 103.º-B do mesmo diploma).
  • A criação de um novo processo urgente para os procedimentos de massa: foi incluída uma nova forma de processo urgente dirigida aos procedimentos de massa (com mais de 50 participantes), nos domínios de concurso de pessoal, procedimentos de realização de provas e, ainda, nos procedimentos de recrutamento. A existência deste mecanismo de concentração num só processo, que corra num só tribunal, de vários processos com pretensões idênticas que os participantes pretendam deduzir, nomeadamente no que respeita ao contencioso contratual, veio dar resposta à exigência de celeridade de litígios relacionados com procedimentos administrativos que envolvam um elevado número de participantes. O CPTA não só consagrou esta nova forma de processo urgente, como também manteve os clássicos processos urgentes correspondentes ao contencioso dos atos administrativos em matéria eleitoral, assim como o relativo à formação dos contratos.
  • A simplificação dos processos cautelares: o juiz, em matéria de produção de prova, possui novos e ampliados poderes de modo a agilizar o processo. Passou a existir um único critério de decisão de providências cautelares (as quais poderão ser adotadas quando se demonstre a existência de um fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado - ou da produção de prejuízos de difícil reparação - e seja provável que a pretensão no processo principal venha a ser julgada procedente).
  • A promoção de uma publicidade alargada do processo administrativo: Não só os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo (STA) e dos Tribunais Centrais Administrativos (TCAs) passaram a ser objeto de publicação obrigatória por via eletrónica, em base de dados de jurisprudência, mas também os dos tribunais administrativos de círculo (TACs) que tenham transitado em julgado. Anteriormente a publicação informática não se revestia de caráter obrigatório e tão pouco abrangia os acórdãos dos TACs.

Bibliografia:

  • SILVA, Vasco Pereira da - O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise - Ensaio sobre as Ações no Novo Processo Administrativo, Almedina, 2013 (Reimpressão da 2.ª Edição de 2009);
  • GOMES, Carla Amado; NEVES, Ana Fernanda; SERRÃO, Tiago (Coord.) - O Anteprojeto de Revisão do Código nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em Debate, AAFDL, Lisboa, 2014;
  • BATALHÃO, José Carlos - Novo Código de Procedimento Administrativo: Notas Práticas e Jurisprudência, PORTO EDITORA, 2015.

André Reis Julião
22133

domingo, 27 de novembro de 2016

DA LIMITAÇÃO DE EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE ILEGALIDADE COM FORÇA OBRIGATÓRIA GERAL IN FUTURUM



             No âmbito das pretensões relativas a normas regulamentares, há que dar um especial enfoque à declaração de ilegalidade das normas regulamentares com força obrigatória geral, maxime no que tange à limitação dos efeitos decorrentes dessa declaração patente no nº 2, do artigo 76.º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA, doravante). O legislador previu a possibilidade de manipular os efeitos já produzidos no passado pelo regulamento, sem, contudo, se pronunciar a respeito da limitação desses mesmos efeitos in futurum. Do que aqui se cuida saber é se, não obstante a ilegalidade do regulamento ter sido reconhecida pela Administração, será viável manter esta norma para o futuro no sentido de ver salvaguardadas determinadas circunstâncias.
            Antes de tratar do referido tema, importa tecer alguns considerandos acerca do regime dos efeitos da declaração de ilegalidade com força obrigatória geral. Nesta sede, o artigo 76.º vem beber muito do seu regime ao artigo 282.º da Constituição da República Portuguesa (CRP, doravante)[1]. Este último preceito incide sobre os efeitos das declarações de inconstitucionalidade ou ilegalidade com força obrigatória geral proferidas pelo Tribunal Constitucional. A regra é a da eficácia retroativa da declaração em apreço, ficando, contudo, ressalvadas as situações que se consolidaram no tempo, nomeadamente os casos julgados e os atos administrativos que já não podem ser impugnados (artigo 76.º, nº 4, do CPTA). O Professor Vasco Pereira da Silva discorda da ressalva dos atos inimpugnáveis, porquanto eles padecem de nulidade na condição de atos consequentes de um regulamento inválido e na medida em que a "inimpugnabilidade contra legem" consubstancia uma distorção de preceitos constitucionais[2].
            Porém, estas situações não são ressalvadas se estiver em causa uma norma sancionatória de conteúdo mais favorável, que é de aplicar retroativamente. No entanto, o Tribunal, alicerçando a sua decisão em critérios de proporcionalidade, pode manipular a retroatividade no sentido da sua limitação ou afastamento, socorrendo-se, para tal, de "razões de segurança jurídica, de equidade, ou de interesse público de excecional relevo, devidamente fundamentadas..." (nº 2, do artigo 76.º, do CPTA). Este preceito tem paralelo na CRP, nomeadamente, no nº 4, do artigo 282.º[3].
            Neste sentido, o nº 2 do artigo 76.º, do CPTA está pensado para a limitação dos efeitos dessa declaração quanto ao passado. Não faz referência aos efeitos futuros. Este assunto tem sido alvo de aceso debate jurisprudencial e doutrinário em sede dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Todavia, sendo o vício da inconstitucionalidade mais gravoso do que o da ilegalidade, naturalmente que a conclusão pela possibilidade de limitar os efeitos para futuro no primeiro se poderá aplicar ao segundo vício mencionado, tendo em conta o brocardo de que a "lei que permite o mais, permite o menos".
            Há quem sustente que a lei ferida de inconstitucionalidade pode continuar a produzir efeitos temporariamente à luz do princípio da proporcionalidade depois de ter sido publicada a declaração respetiva[4]. O fundamento desta situação residiria na própria ordem constitucional e na segurança jurídica, na medida em que urgiria tutelar as expetativas dos particulares que fizeram planos de vida com base na norma inconstitucional, cuja proteção justificaria a manutenção dessa norma em vigor transitoriamente. A restrição de efeitos in futuro perfilar-se-ia como um meio de salvaguardar interesses constitucionalmente protegidos[5]. Na verdade, o preceito constitucional permite essa leitura, uma vez que admite que o TC fixe os efeitos da inconstitucionalidade "com alcance mais restrito do que o previsto nos nºs 1 e 2". Tendo por base o elemento teleológico de interpretação da norma, seria de concluir que é a própria ordem constitucional a reclamar o protelamento para futuro da produção de efeitos da norma declarada inconstitucional, ao abrigo do princípio da proporcionalidade.
            Também não beliscaria o princípio da subordinação das autoridades administrativas à Constituição a vinculação que resultasse daquela limitação pelas razões a que já se aludiu. Estaria em causa um poder de exercício vinculado por parte do Tribunal Constitucional, − e não um poder discricionário − na medida em que se submete aos princípios constitucionais objetivamente vigentes. Reconhece esta doutrina que a Administração deveria recorrer ao artigo 282.º, nº 4, da CRP sempre que imperativos constitucionais exigissem a aplicação transitória de normas inconstitucionais[6]. No entanto, não deixa de admitir que a solução é casuística, sendo de dar primazia à suspensão de aplicação da norma em detrimento de diferir para futuro a cessação da vigência da norma inconstitucional.
            Salienta, por fim, que tal norma não pode continuar a produzir efeitos ad eterno, cabendo ao TC estabelecer o menor período de tempo possível para a sua manutenção em vigor.
            Para outro setor da doutrina, não é reconhecido admissibilidade jurídica a este meio, sufragando não ter assento constitucional[7]. São quatro os fundamentos, os quais surgiram a propósito do polémico acórdão 353/2012. Em primeiro lugar, aponta-se para o facto de o âmbito temporal da norma plasmada no artigo 282.º, nº 4, da CRP estar delimitado no que concerne à extensão da eficácia jurídica da decisão de inconstitucionalidade. Na medida em que, por via de regra, a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral tem eficácia retroativa, eliminando, deste modo, da ordem jurídica todos os efeitos produzidos ao abrigo da norma em causa, o preceito referido, ao aludir à fixação de um "alcance mais restrito" estaria, somente, a permitir ao Tribunal Constitucional graduar os efeitos da sua decisão em relação ao passado. Com efeito, aquela decisão só teria eficácia "ex nunc", visando salvaguardar efeitos passados inconstitucionais. Não haveria, por conseguinte, "cobertura constitucional" para o diferimento para futuro a produção de efeitos da declaração de inconstitucionalidade.
            Outro argumento nesta linha prende-se com a incongruência patente em se considerar que uma norma nula produz efeitos como se fosse válida, sendo que, por definição, as normas feridas de nulidade têm-se como nunca tendo produzido quaisquer efeitos.
            Nesta esteira, também se argumenta no sentido da utilização de um outro expediente, que, pese embora tenha um efeito semelhante, não belisca a Constituição − está em causa retardar a data de publicação da decisão de inconstitucionalidade a fim de conferir ao legislador margem para intervir, uma vez que é a partir daquela data que a decisão produz efeitos.
            Por último, chama-se à colação um elemento histórico de interpretação, nos termos do qual não se considera admissível uma decisão daquele teor, na medida em que foi posta de parte nos trabalhos preparatórios da revisão constitucional de 1982. Desta "mutação constitucional informal"[8] decorreria um entorse à letra da Constituição e ao espírito do legislador.
            Com a devida vénia, perfilhamos um entendimento diferente. Na verdade, o argumento histórico é aquele que, não obstante a sua importância, menos peso tem aquando da interpretação de uma norma, dada a crescente evolução que ocorre ao longo dos tempos. De igual insuficiência padece também o argumento literal, constituindo um imperativo, por vezes, o recurso ao elemento teleológico de interpretação. Neste sentido, há que reiterar a ideia segundo a qual pode ser necessário proteger as legítimas expetativas dos particulares que fizeram planos de vida, confiando na norma ora declarada inconstitucionalidade, não podendo, no entanto, transpor o perímetro do princípio da proporcionalidade.           
            Em face do exposto, parece defensável que, ao se reconhecer a possibilidade de diferir a eficácia da norma julgada inconstitucional para futuro, se admita ser razoável, em virtude do argumento "maioria de razão", aplicar análogo raciocínio para as decisões proferidas ao abrigo do artigo 76.º, nº 2, do CPTA. Na verdade, assumindo a inconstitucionalidade o lugar de topo enquanto vício que encerra maior gravidade no ordenamento jurídico, é de aplicar o mesmo mecanismo a título de princípio geral de direito. Nos termos da máxima segundo a qual "a lei que permite o mais, permite o menos", parece plausível reconhecer às decisões que declaram a nulidade de atos administrativos a possibilidade de restringir os seus efeitos in futurum.


 Miguel Nuno Sousa, nº 24310
 Subturma 8


Bibliografia

Almeida, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016.

Canotilho, J. J. Gomes / Moreira, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4.ª ed., Reimp., Coimbra Editora, 2014.

Medeiros, Rui, A Decisão de Inconstitucionalidade : os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei, Universidade Católica Editora, Lisboa, 1999.

Morais, Carlos Blanco de "As mutações constitucionais implícitas e os seus limites jurídicos: Autópsia de um Acórdão Controverso", 2013.

Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no divã da Psicanálise, 2ª. ed., Almedina, Coimbra, 2009.


 Miguel Nuno Sousa, nº 24310
 Subturma 8


[1]              Neste sentido, vide Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, pp. 111 e 112.
[2]              Cfr. Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no divã da Psicanálise, 2ª. ed., Almedina, Coimbra, 2009, p. 428.
[3]              As razões de equidade, segurança jurídica e interesse público de excecional relevo consubstanciam conceito jurídicos indeterminados devendo os primeiros estarem dotados de uma determinada consistência a fim de legitimar a preterição do princípio-regra dos efeitos da inconstitucionalidade ou ilegalidade. Já a invocação do último conceito deve ser acompanhada de fundamentação adequada. Neste sentido, veja-se J. J. Gomes Canotilho/ Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4.ª ed., Reimp., Coimbra Editora, 2014 p. 980.
[4]              Cfr. Rui Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade : os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei, Universidade Católica Editora, Lisboa, 1999, pp. 734 e ss. 
[5]              Cfr. op. cit., p. 726. O Professor Rui Medeiros apresenta o exemplo das leis que densificam imposições constitucionais em termos discriminatórios e alude ao" vazio jurídico" que estaria subjacente às situações de ausência de efeito repristinatório. Neste caso, conclui que enquanto não sobreviesse nova legislação, seria de manter em vigor a norma inconstitucional, aceitando, irremediavelmente, que "pouco é melhor do que nada".
[6]              Cfr. op. cit., pp. 730 e 731. O autor aborda a propósito desta situação que a recusa de aplicação de uma norma inconstitucional deste teor pode conduzir a um entorse da segurança jurídica, da equidade ou de outro interesse constitucionalmente protegido. Seria o princípio da constitucionalidade em sentido amplo a obstar a que tal suceda.
[7]              Neste sentido, vide Carlos Blanco de Morais, "As mutações constitucionais implícitas e os seus limites jurídicos: Autópsia de um Acórdão Controverso", 2013, p. 59.
[8]              Cfr. op. cit., p. 61.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

A Aceitação do Acto Administrativo

            No presente post iremos tratar de matéria relativa à aceitação do acto administrativo, partindo do artigo 56º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante CPTA) e passando pelas posições doutrinárias e por jurisprudência do Tribunal Central Administrativo Sul (doravante TCA-Sul).
            Em primeiro lugar, há que ter presente o artigo 56º do CPTA, que surge englobado na legitimidade para a impugnação contenciosa de actos administrativos, o que também estava presente no anterior CPTA, no Regulamento do STA (artigo 47º- “Da legitimidade para recorrer”) e no artigo 827º do Código Administrativo de 1940, que regulava a aceitação do acto administrativo[1].
            O Professor Vasco Pereira da Silva entende que este pressuposto processual negativo não se deve reconduzir à legitimidade, referindo que a ideia clássica de que o particular não é titular de direitos subjectivos perante a Administração originaria a que a aceitação fosse tratada no âmbito da legitimidade processual[2].
            A aceitação do acto administrativo encontra o seu fundamento nos princípios constitucionais da segurança jurídica e da boa fé, que prevalecem no confronto com o princípio da legalidade e a liberdade de acesso ao Direito e à justiça. No que toca ao confronto com o princípio da legalidade (artigos 266º/2 da Constituição da República Portuguesa – CRP – e 3º CPA), este assume aqui um sentido negativo, ou seja, “são proscritas actuações administrativas que contrariem a lei”[3], prevalecendo esta sobre as primeiras.
Por sua vez, a tutela jurisdicional efectiva especialmente consagrada no artigo 268º/4 CRP enquanto garantia dos administrados, surge limitada pela tutela da confiança, uma das concretizações do princípio da boa fé (artigos 266º/2 CRP e 10º/2 CPA), que proíbe o venire contra factum proprium. Como frisa José Vieira de Andrade, o “acesso aos tribunais administrativos só é assegurado pela Constituição aos particulares na medida em que estes sejam sujeitos de direitos ou interesses legalmente protegidos e não a qualquer titular de interesse directo, pessoal e legítimo na anulação do acto que tenha legalmente direito de recurso”, admitindo-se a compressão deste direito pela sua ponderação com outros princípios constitucionais[4].
A nossa doutrina tem entendido a aceitação do acto administrativo como “uma manifestação de vontade que traduziria o acordo, expresso ou tácito, com um acto administrativo (definitivo e executório) já praticado, que impediria o aceitante, se a aceitação fosse livre, de recorrer desse acto”[5]. Rui Machete diz-nos que esta manifestação de vontade dá-se sob a forma de declaração negocial, com efeitos substantivos, nomeadamente a extinção do direito de impugnar, e, como consequência, processuais, precludindo-se essa possibilidade de impugnar.[6]
            Por outro lado, há que ter em conta a natureza processual deste pressuposto. Iremos analisar se se trata de um pressuposto processual autónomo ou se de uma questão de interesse processual em agir.
            No que diz respeito à primeira tese, temos como defensores os professores Sandra Lopes Luís e Vieira de Andrade, considerando este que a incompatibilidade da conduta do particular com a vontade de recorrer deve ser apreciada normativamente, cabendo ao juiz averiguar essa compatibilidade ou a falta dela. Já o professor Vasco Pereira da Silva entende tratar-se de um mero interesse em agir, dado que o particular, ao aceitar o acto, demonstra perda de interesse em agir contenciosamente contra a Administração[7].
            No entanto, a doutrina e a jurisprudência maioritárias em Portugal consagram a aceitação do acto administrativo como um pressuposto negativo de legitimidade, como é a posição de Rui Machete, referido supra. Tal posição baseia-se no cariz negocial da declaração/aceitação com efeitos substantivos, o qual implicaria uma renúncia ao direito ou interesse legítimo que conferiria legitimidade para a impugnação.
            Creio que tal argumento é de se rejeitar, na medida em que é a lei que estabelece a perda da faculdade de impugnar, sem ter em conta a vontade do particular (tese do acto jurídico). No que concerne ao argumento sistemático, i.e. a inserção da aceitação do acto administrativo na subsecção relativa à legitimidade para a impugnação, tal parece ser afastado pelo crescente pendor subjectivista do contencioso administrativo.
            Na minha opinião, não estamos perante uma efectiva perda do interesse em agir com a aceitação do acto administrativo, dado que este se dirige a actos desfavoráveis ao aceitante. Não se pode, por isso, negar a utilidade da impugnação judicial pelo indivíduo.
            Concluo com o entendimento do Juiz Relator do TCA-Sul, que nos diz que “a aceitação tácita do acto administrativo é um pressuposto processual autónomo que implica a impossibilidade de impugnação ou a ilegitimidade superveniente, consoante a aceitação ocorra após a prática do acto, mas antes da propositura da acção, ou já na pendência desta”[8].



[1] Andrade, José Carlos Vieira de, “A Aceitação do Acto Administrativo”, in Boletim da Faculdade de Direito – Volume Comemorativo, 2003, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, p. 907 (nota 1), e Luís, Sandra Lopes, A Aceitação do Acto Administrativo – Conceito, Fundamentos e Efeitos, 2004, Lisboa, p. 127
[2] Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2.ª ed., 2009, Almedina, Coimbra, pp. 260 a 262 e 373 a 376
[3]  Sousa, Marcelo Rebelo de/Matos, André Salgado de, Direito Administrativo Geral – Introdução e princípios fundamentais, Tomo I, 3.ª edição, 2008, Publicações Dom Quixote, Lisboa, p. 163
[4] Andrade, José Carlos Vieira de, “A Aceitação do Acto Administrativo”, in Boletim da Faculdade de Direito – Volume Comemorativo, 2003, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, pp. 931 a 932
[5] Ibid., p. 165
[6]  Machete, Rui, “Sanação (do acto administrativo inválido) ”, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, Volume VII, 1996, Coimbra Editora, Coimbra, pp. 336 e ss
[7] Silva, Vasco Pereira da, op. cit., p. 374.
[8]  Ac. do TCA Sul de 04/03/2010 (António Vasconcelos), processo n.º 02745/07. No mesmo sentido, Ac. do TCA Sul de 25/11/2011 (Clara Rodrigues), processo n.º 08219/11

Carlos Lourenço, nº 22169

terça-feira, 1 de novembro de 2016

O domínio do artigo 4º, n.º1 k) do ETAF


O artigo 4.º, n.º1 k) do ETAF, designa como objecto de litígios emergentes das relações jurídico-administrativas, “a presunção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de (…) quando cometidas por entidades públicas”. D. FREITAS DO AMARAL E M. AROSO DE ALMEIDA, com o apoio da letra da lei são da opinião de que o legislador consagrou um critério objectivo/natureza da entidade demandada quando explicita “cometidas por entidades públicas”, ou seja, quando estão em causa relações jurídicas que sejam reguladas pelo direito Administrativo e em que intervenham entidades públicas, abdicando de um critério material de delimitação entre actuações de gestão pública e actuações de gestão privada das entidades públicas, critério que foi adoptado no preceito do mesmo artigo referente ao domínio da Responsabilidade Civil Extracontratual das entidades públicas. CARLA AMADO GOMES critica a opinião dos autores anteriormente referidos, afirmando que o alargamento do domínio dos litígios do artigo em questão, que estes sustentam por o legislador no ETAF proceder a uma simplificação e abdicar da distinção entre os atos de gestão pública e privada, sustentados por um critério puramente objectivo/orgânico excluiria as agressões ao ambiente perpetradas por entidades privadas colaboradoras com a Administração em missões de satisfação do interesse público. Em ordem a não existir essa exclusão, teria que se adoptar um critério objectivo/orgânico com um critério material (o exercício da função materialmente administrativa). Em resposta à crítica anterior, M. AROSO DE ALMEIDA refere que o alargamento no domínio dos litígios no artigo em causa é na medida de comparação com o regime que precedeu o ETAF (mais precisamente o artigo 45.º da Lei de Bases que reconduzia para a jurisdição comum todos os litígios que tivessem como objecto agressões ao ambiente) e com aquele que resultaria da estrita aplicação do critério material residual constante no artigo 4.º, n.º 1 o) do ETAF. As actuações de gestão pública visam a prossecução do interesse público sob a égide do direito público, enquanto, as actuações de gestão privada são reguladas por direito privado. Para a determinação da jurisdição competente, a distinção poderia ser feita atendendo a um critério finalístico, ou seja, a actuação que visasse como fim o interesse público seria reconduzido à jurisdição administrativa. Como é pronunciado numa decisão do STA “a distinção entre atos de gestão pública e os atos de gestão privada não pode assentar em exclusivo na identidade ou diversidade de normas a observar. O que se impõe (…) não o ato em si, como isolado mas (…) o tipo de actividade em que ele se insere”. A verdadeira justificação da adopção do critério de simplificação pelo legislador, em que deixou de ter relevância a distinção entre actuações de gestão pública ou privada, foi a de que no caso de serem operações materiais perpetradas na violação dos bens e valores contantes no preceito em causa, estas não possuem uma natureza jurídica e como tal não têm um conteúdo regulado por direito Administrativo ou por direito Privado, dificultando a definição do âmbito de jurisdição a que pertencem, se administrativa, se comum, sendo assim admissíveis, por simplificação, no âmbito da jurisdição administrativa. Entendem então estes autores, que o critério explícito no preceito da alínea k) do artigo tem de ser complementado com uma interpretação sistemática de todo o artigo, por forma a englobar o exemplo que CARLA AMADO GOMES deduziria que se excluiria do domínio do artigo em questão. Sendo assim, a doutrina é unânime acerca do domínio de aplicação do artigo 4.º, n.º1, k) do ETAF inclui, com vista à prevenção, cessação e reparação de violações ao abrigo de atos administrativos : i) a impugnação, por acção singular ou por acção popular (conforme artigo 9.º, n.º2 do CPTA e Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, de actos administrativos (autorizações, licenças); ii) acções contra actuações ou omissões das entidades públicas; iii) acções contra actuações de entidades privadas, ao abrigo de actos administrativos autorizativos ilegais; iv) acções contra actuações de entidades privadas ao abrigo de uma omissão do dever de vigilância por parte da Administração. Exclui-se então, do domínio do preceito em causa e consequentemente do âmbito de jurisdição administrativa, as actuações que não são reguladas por regras e princípios de direito administrativo e/ou que não traduzam o exercício de prerrogativas do poder público, ou na perspectiva dos critérios objectivo/orgânico e material de CARLA AMADO GOMES, actuações por privados que não estão abrangidas por atos administrativos autorizativos e que não represente o exercício de funções materialmente administrativas.

- D. FREITAS DO AMARAL e M. AROSO DE ALMEIDA, “Grandes Linhas de Reforma do Contencioso Administrativo – Aspectos Estruturais: o novo ETAF”, Coimbra, 2002;
- CARLA AMADO GOMES, “O artigo 4.º do ETAF: um exemplo de creeping jurisdiction? – especial (mas brevíssima) nota sobre o artigo 4.º, n.º 1, l) do ETAF”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Armando Marques Guedes, Coimbra, 2004;
- CARLA AMADO GOMES, “Contributo para o estudo das operações materiais da Administração Pública e do seu controlo jurisdicional”, Coimbra 1999;
- M. ARODSO DE ALMEIDA, “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, 2016
- “A reforma de 2002 e o âmbito da jurisdição administrativa”, CJA, n.º 35, 2002

Natércia Claro, n.º 24627

Controlo Jurisdicional no âmbito da margem de livre apreciação administrativa - uma violação do princípio da separação de poderes?


           

        

           O presente comentário tem por objecto falar da problemática do âmbito de aplicação do artigo 71/2/CPTA, isto é: saber se, no âmbito da condenação da administração à prática de acto legalmente devido, não coloca em causa o princípio da separação de poderes, o controlo jurisdicional que possa haver por parte do tribunal face àquilo que é a margem de liberdade legalmente reservada à administração.
            O artigo 71/CPTA, ao permitir a condenação da administração à prática de acto legalmente devido, concretiza o princípio da tutela jurisdicional efectiva, previsto no artigo 268/4 e 20/1/CRP.             Importa, primeiramente, fazer uma breve diferenciação de âmbitos dos poderes em causa, no artigo 71/CPTA, atendendo à natureza do acto administrativo em causa.
            Existe o âmbito dos poderes vinculados, em que a administração se encontra vinculada, por lei, a só poder praticar um único como possível, não existindo, pois, qualquer margem de liberdade e de conformação administrativa, que permita uma  valoração das situações em presença, pois que só há uma solução como legalmente possível. Apenas cabe à administração conferir da verificação dos pressupostos legais para o acto poder ser emitido. Esta situação encontra-se prevista no artigo 71/1/CPTA, podendo o tribunal condenar a administração à emissão de um acto com um conteúdo já pré-determinado, e, por isso, vinculado. Temos, também, o âmbito dos poderes discricionários, em que, existindo mais do que uma solução como legalmente possível, a administração pode, valendo-se da sua margem de liberdade, escolher qual a conduta que lhe pareça ser a mais adequada ao caso concreto, tendo em conta as circunstâncias, não podendo o tribunal determinar o conteúdo do acto. A tal situação se refere o artigo 71/2/CPTA. Ainda dentro desta discricionariedade, pode acontecer um fenómeno conhecido por “redução da margem de livre apreciação a zero”, isto é, ainda que o acto seja discricionário, acaba por só haver uma solução como legalmente possível.
            A chamada margem de livre apreciação consiste numa margem que é reservada legalmente à administração para que esta possa decidir, nos termos do artigo 71/2/CPTA, “segundo a formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa”, na medida em que a situação assim o determine, por estarmos perante, por exemplo, conceitos indeterminados-tipo, como seja “interesse público”; “experiência profissional relevante”.Este artigo, em geral, e tendo em conta a sua epígrafe, visa delimitar os poderes de pronúncia do tribunal, isto é, até onde pode ir o tribunal na fiscalização da função administrativa, por forma a assegurar que a autonomia administrativa não é afectada. Tal objectivo também se encontra consagrado no artigo 3/1/CPTA, o qual consagra o princípio da limitação funcional da jurisdição administrativa.
            A meu ver, este controlo judicial não viola o princípio da separação de poderes, o qual vem previsto no artigo 111/1/CRP. Ainda que na margem de liberdade que a lei lhe confere o Tribunal não possa imiscuir-se, a não ser, como veremos, no controlo dos parâmetros de legalidade, isto não quer dizer que discricionariedade seja sinónimo de arbitrariedade, não havendo uma independente e total valoração dos conceitos indeterminados-tipo, que, depois, importa concretizar in casu.
            Por um lado, é certo que os Tribunais não podem proceder a um controlo de mérito dos actos administrativos emitidos, apreciando da sua conveniência e oportunidade, uma vez que tal é da exclusiva responsabilidade da função administrativa. Tal afirmação suporta-se no entendimento de que a administração está mais próxima do caso concreto, sabendo qual a melhor decisão a tomar, tendo em conta a sua finalidade de prossecução do interesse público, evitando, consequentemente, que todas as situações sejam decididas da mesma forma, dado o carácter casuístico.
            Por outro lado, como não existem actos totalmente discricionários (assim como não há totalmente vinculados), tem de haver sempre, sob pena de possível violação do princípio da legalidade (3/1 e 266/2/CRP), uma parametrização por parte dos Tribunais, isto é, uma espécie de “balizamento” nas considerações que a administração venha a realizar, pois a administração tem de se submeter à lei (266/2/CRP). Podemos, assim, falar, como a doutrina costuma fazer referência, há existência de limites à actuação administrativa. Temos os princípios gerais que orientam toda a actividade administrativa, como o princípio da imparcialidade (9/CPA); da proporcionalidade (7/CPA e 18/2/CRP); da igualdade (6/CPA e 13/CRP), vendo, neste caso, se tratou casos idênticos ou situações análogas da mesma forma ou não; da boa fé (10/CPA); razoabilidade e da justiça (8/CPA e 266/2 e 268/CRP); da prossecução do interesse público (4/CPA), bem como limites que respeitam ao fim (prossecução do interesse público), à competência, e da fiscalização da existência de vícios como o desvio de poder, o erro de facto, o erro de manifesta apreciação ou o vício de forma. No que diz respeito ao princípio da igualdade, para ver se foi violado ou não este princípio, deve ser feito um juízo de prognose.
            Não podem, portanto, pronunciar-se sobre o mérito e a oportunidade dos actos emitidos, sob pena de violação do princípio da separação do poder judicial face ao administrativo. Como nos diz  BERNARDO DINIZ DE AYALA, “a autonomia pública administrativa qua tale apenas admite, pois, controlo gracioso, não contencioso”.Pois é a administração que sabe, dada a sua maior proximidade ao caso concreto, o que é melhor para a prossecução do interesse público. 
            Como nos diz AFONSO RODRIGUES QUEIRÓ, ainda que o acto administrativo em causa seja não vinculado, tem de haver um controlo, pois o acto emitido tem de ter sempre em vista a satisfação do interesse público, havendo, assim, uma vinculação quanto ao fim. Tal é também o entendimento do acórdão 01459/06, de 16/03/2006, relatora Cristina dos Santos, do Tribunal Central Administrativo Sul, que nos diz que“o domínio da sindicabilidade jurisdicional do mérito administrativo concentra-se no conhecimento dos limites positivos de competência, de finalidade, de imparcialidade e de proporcionalidade...”
            Neste sentido, a sentença que venha a ser emitida tem sempre de determinar estas vinculações legais a que a administração está sujeita. Como nos diz MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “(...)sobre os tribunais administrativos, enquanto órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas..., recai o sagrado dever de fazer cumprir a lei e o Direito, em toda a extensão em que a conduta da Administração se deva pautar por regras e princípios jurídicos”, acrescentando, ainda, que“os processos de condenação à prática de actos administrativos são processos de geometria variável, no sentido em que não têm todos a mesma configuração...”
            Concordo, portanto, que é fulcral a existência de um controlo jurisdicional face à função administrativa para que o princípio da legalidade não seja subvertido e o fim de interesse público seja assegurado da melhor forma, sem que com isso se coloque em causa o princípio da separação de poderes e a autonomia do órgão administrativo, porque, afinal, o juiz não se está a substituir ao órgão administrativo, decidindo por ele, mas, sim, apenas, a fiscalizar tal procedimento, impondo “limites funcionais”. Acompanho, assim, o entendimento do Professor VASCO PEREIRA DA SILVA, que nos diz que a discricionariedade que por lei é concedida à administração, não pode ser visto, nas suas palavras, como um “poder à margem da lei”, ou excepção ao princípio da legalidade.
             

           Bibliografia:

                  - Bernardo Diniz de Ayala, O (défice) de controlo judicial da margem de livre decisão administrativa
-      Vasco Pereira da Silva, O contencioso administrativo no divã da Psicanálise
-      Mário Aroso de Almeida, Manual de processo administrativo
-      Afonso Rodrigues Queiró, O poder discricionário da administração

-      Vieira de Andrade, Lições de direito administrativo 

Inês Costa, nº24843, Subturma 8

Ação popular para a defesa de interesses individuais homogéneos

Ação popular para a defesa de interesses individuais homogéneos
Para dar cumprimento a umas das exigências de avaliação continua da cadeira de Contencioso Administrativo e Tributário proponho a análise do tema da ação popular para a defesa de interesses individuais homogéneos
A ação popular, no dizer da doutrina, constitui uma ação em sentido técnico, isto é, um meio processual pertencente ao contencioso administrativo[1], que o professor MÁRIO AROSO DE ALMEIDA[2], para evitar equívocos, esclarece não ser, em si mesmo, uma forma de processo, aliás, qualquer das pessoas e entidades legitimadas pelo art. 9/2/CPTA, pode dirigir-se aos tribunais administrativos para deduzir pretensões correspondentes a qualquer forma de processo prevista pela lei processual administrativa. Acrescenta-se ainda que a ação popular constitui uma faculdade de exigir aos órgãos jurisdicionais a prestação de uma atividade contenciosa destinada à resolução de um determinado litigio através da efetivação da garantia jurídica dos direitos dos ofendidos[3]. Constitui ainda uma forma de alargamento da legitimidade ativa[4], uma expressão do direito fundamental de acesso aos tribunais, como nos diz JOSÉ ROBIN DE ANDRADE[5]. É um meio de participação dos cidadãos na atividade da administração pública, um instrumento importante de realização democrática que está à disposição de qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos assim como de associações e fundações independentemente da existência de um interesse direto na demanda, tal na resulta do art. 2º da Lei nº83/95, de 31/08, art.52/3/CRP.
Os interesses em causa podem ser de varia ondem, como se pode ver pelo Ac. do Tribunal Central Administrativo Sul de 23-01-2014 relado por ANA CELESTE CARVALHO. Segundo o acórdão supra mencionado, o objeto da ação popular é, antes de mais, a defesa de interesses difusos, na medida em que, sendo interesses de toda a comunidade, deve reconhecer-se aos cidadãos uti cives e não uti singuli, o direito de promover, individual ou associativamente, a defesa de tais interesses. Atendendo ao conceito de interesse difuso lato sensu, podemos dizer que se inclui no objeto da ação popular, atendendo aos ensinamentos magistrais do professor MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, (adotados pelo tribunal da Relação de Coimbra no Ac. de 7-11-2006 relatado por COELHO DE MATOS), quer os interesses difusos stricto sensu, quer os interesses coletivos, quer ainda os respetivos interesses individuais homogéneos, o que, em termos práticos, significa que a ação popular pode visar tanto a prevenção da violação de um interesse difuso stricto sensu ou de um interesse coletivo, como a reparação dos danos de massas resultantes da violação destes interesses (cfr. artigo 52.º, n.º 3, al. a), CRP). Em contrapartida, no objeto da ação popular nunca se podem compreender direitos ou interesses meramente individuais.
Com efeito, em virtude do feixe de interesses que converge ou pode convergir sobre determinado bem há que distinguir:
- Interesse individual: interesse individual especifico de um individuo ou direito subjetivo, não se confundindo com os interesses difusos, residindo a diferença entre ambos, segundo MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, no facto de os interesses difusos serem interesses que possuem uma dimensão individual e supra-individual ao contrário dos interesses individuais que possuem apenas uma dimensão individual visto pertencerem apenas e exclusivamente a um ou alguns titulares. Assim, os interesses difusos são exercidos e defendidos no interesse da coletividade (uti civis), enquanto que os interesses individuais respeitam, em exclusivo, a um ou alguns sujeitos e, por isso, são exercidos ou defendidos no interesse próprio dos seus titulares.
- Interesse difuso:  interesses com uma pluralidade de titulares, não podendo existir, como defende MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA[6], no ordenamento jurídico português (art.15º/1/LPPAP, 19º/1/LPPAP, 2º/2/LPPAP) interesses difusos sem titulares. Traduzem uma refração em cada individuo de interesses unitários da comunidade, são interesses sem titular determinável, meramente referíveis na sua globalidade  a categorias indeterminadas  de pessoas[7].
- Interesses coletivos: interesse particular comum a certos grupos e categorias. O professor MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA distingue estes interesses dos difusos com base num critério organizativo, assim os interesses coletivos pressupõem uma organização que exprime uma união entre os membros da coletividade, enquanto os interesses difusos permanecem autonomizados e não permitem uma valoração unitária. Nesta perspetiva, continua o professor, os interesses coletivos não dependem da natureza do bem que é objeto de aspiração comum, mas da vontade dos seus titulares.
Efetuada a caracterização sucinta dos interesses acima referidos, estamos em condições de proceder à analise dos interesses individuais homogéneos, segundo MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA[8], estes interesses são a concretização dos interesses difusos stricto sensu e dos interesses coletivos em cada um dos seus titulares. Enquanto os interesses difusos stricto sensu e os interesses individuais correspondem à dimensão supra-individuais  dos interesses difusos lato sensu, os interesses individuais homogéneos são a refração daqueles mesmo interesses na esfera de cada um dos seus titulares. Representam todos aqueles casos em que os membros da classe são titulares de diversos direitos, mas dependentes de uma única questão de facto ou de direito, pedindo-se para todos eles um provimento jurisdicional de conteúdo idêntico[9]. Tais interesses, atendendo ao conteúdo dos artigos 52/3/CRP e 1º/2/ Lei nº 83/95 e ao 9/2/CPTA, parecem estar excluídos, à primeira vista, do âmbito da ação popular. Contudo, no AC. do STJ de 23- 09-1997 Relator MIRANDA GUSMÃO, lançando mãos dos elementos de interpretação, este tribunal considerou que, o alcance e sentido da norma ínsita no n. 1 do artigo 15 da Lei n. 83/95, implica que as normas do artigo 1, do mesmo diploma legal, sejam interpretados no sentido de abarcarem não só "os interesses difusos", mas também "os interesses individuais homogéneos". Um exemplo de ação popular de defesa de interesses individuais homogéneos é a ação intentada pela  ACOP (Associação de Consumidores de Portugal) com vista à obtenção de uma indemnização para os assinantes de contrato de serviço telefónico público por violação contratual da prestadora do serviço ( Ac. STJ de 23-09-1997 (relator: MIRANDA GUSMÃO)).






                                                                                                                     Ludimila Agostinho Sanca
Nº 24205
Subturma: 8




[1] Nuno Sérgio Marques Antunes, O direito de ação popular no contencioso administrativo, Lex, 1997, pp. 7-14.
[2] ALMEIDA, Mário Aroso de. Manual de processo Administrativo. Almedina, 2016, 2ª edição, pag217
[3]ANDRADE, José Robin de. Ação popular no direito administrativo português. Coimbra: editora, 1967, pag.3
[4] Acórdão do tribunal central administrativo sul de 23-01-2014 (relatora: Ana Celeste Carvalho)
[5] ANDRADE, José Robin de. Ação popular no direito administrativo português. Coimbra: editora, 1967, pag.98
[6] SOUSA, Miguel Teixeira de. A legitimidade popular na tutela dos interesses difusos, LEX 2003, pag 23
[7] AC. do Tribunal Central Administrativo Sul de 23-01-2014. Relatado por  ANA CELESTE CARVALHO
[8] SOUSA, Miguel Teixeira de. A legitimidade popular na tutela dos interesses difusos, LEX 2003, pag 51
[9] AC. do STJ de 23- 09-1997. Relator MIRANDA GUSMÃO