segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

João Amaral - Considerações sobre a natureza da acção popular no Contencioso Administrativo.

João Amaral
N.º 22231 
Subturma 8




Considerações sobre a natureza da acção popular no Contencioso Administrativo.




Primeiramente, importa sublinhar que, sem prejuízo das várias acepções ou modalidades que devamos admitir que a acção popular conforma, esta trata-se, desde logo, de um direito constitucional de “participação política”, consagrado no artigo 52º, n.º 3 da nossa Lei Fundamental, norma que foi sujeita a profundas alterações na Revisão de 1989(1).
No âmbito do Contencioso Administrativo, a acção popular encontra-se prevista no artigo 9º, n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante, “CPTA”), embora se haja optado pela não utilização da expressão. A inserção sistemática do preceito afigura-se-nos, per si, como indiciadora da natureza do instituto, sendo, a este propósito, de louvar o pragmatismo do legislador. Efectivamente, a acção popular serve a função e reveste a natureza de extensão da legitimidade processual activa “a quem não alegue ser parte na relação material controvertida”(2), designadamente, a qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos, às associações e fundações defensoras dos interesses em causa (i.e., a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais, artigo 9º, n.º 2º, in fine) , às autarquias locais e ainda ao Ministério Público.
Dir-se-á, na esteira de MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, que se deve considerar ultrapassada a concepção, já defendida por alguma doutrina, de que a acção popular consiste numa forma de processo autónoma(3)(4) – principalmente porquanto ficou determinado que “a acção popular administrativa pode revestir qualquer das formas de processo previstas” no CPTA, no artigo 12º, n.º 1, da Lei n.º 83/ 95, de 31 de Agosto, que define as condições do exercício do direito de acção popular – mas nem por isso será de admitir ter-se esgotado o seu interesse dogmático. Aliás, o argumento sobredito, embora condição suficiente para a sustentação desta tese, encontra-se longe de ser peremptório. Debrucemo-nos sobre este aspecto.
Defende MÁRIO AROSO DE ALMEIDA que, para se desconsiderar a acção popular enquanto forma de processo, deve entender-se as especialidades a nível processual introduzidas pela referida Lei n.º 83/95 como sendo referentes a “[apenas] alguns aspectos da tramitação processual”, devendo “essas especialidades ser enxertadas, em cada caso, no regime de tramitação processual ao caso for aplicável segundo as regras gerais” (5).
A este respeito, cumpre explicitar as principais modificações de índole processual constantes do regime ora em análise. Este prevê, para além do concernente à legitimidade activa, nomeadamente, as seguintes especialidades: deveres especiais quanto à audiência prévia (artigo 4º), ao anúncio público (artigo 5º), à consulta de documentos públicos e demais actos do procedimento pelos interessados (artigo 6º), à audição dos interessados (artigo 8º), de ponderação e de resposta pela autoridade instrutora (artigo 9º), de gestão processual (artigo 10º), regimes especiais de indeferimento da petição inicial (artigo 13º) e de representação (artigo 14º), confere um direito de exclusão por parte de titulares dos interesses em causa, semelhante às cláusulas opt out das class actions, no Direito Comparado (artigo 15º), a possibilidade do Ministério Público se substituir ao autor em caso de desistência da instância ou do pedido, de transacção ou outros comportamentos lesivos do interesse em causa (artigo 16º), e ainda modificações quanto aos efeitos de caso julgado e quanto aos preparos e às custas (artigos 19º e 20º, respectivamente).
Como se pode conferir, as matérias sujeitas a um regime especial afiguram-se como sendo de manifesta amplitude. Aliás, de uma perspectiva pelo menos quantitativa, é dada maior atenção pelo legislador à acção popular do que à vasta maioria de formas de processo previstas no CPTA. A este respeito, e tendo em conta o que ficou sobredito, poder-se-ia, porventura, retorquir à tese enunciada supra no sentido de que a acção popular, sendo um instituto de fonte constitucional, munido de um regime legal especial que percorre uma multiplicidade de momentos e processuais, não se limitaria a consistir numa extensão de legitimidade, a integrar os tipos de acção existentes. Ou, por outro lado, questionar-se-ia até que ponto é que se poderá adaptar uma forma de processo por referência a um regime especial que se sobreponha a parte ou à totalidade dos elementos respeitantes à tramitação processual daquela forma de processo, sem a descaracterizar por completo ou mesmo substituindo-a [?]. Para tanto, bastaria admitir-se a comunicabilidade dos elementos de tramitação processual da acção popular previstos na Lei n.º 83/95 e os constantes do CPTA e, desta forma, colmatar as lacunas existentes ao nível deste instituto, de modo a que se pudesse considerar uma forma de processo autónoma.
Contudo, tendo em conta os argumentos já descritos supra, não parece ter sido esta a opção do legislador. Efectivamente, para além do já referido artigo 12º, apenas o artigo 11º da Lei n.º 83/95 prevê a aplicação de outro normativo (Código do Procedimento Administrativo) para complementar o regime das acções populares. A hipotética comunicabilidade referida careceria de previsão expressa.
Posto isto, conclui-se reiterando o facto de que a acção popular, para o Contencioso Administrativo hodierno, resume-se a uma extensão da legitimidade processual activa das formas de processo previstas CPTA, ressalvando-se apenas a possibilidade de futuras alterações aos regimes que aqui foram tratados.


__________________________

(1) Não sendo este o momento oportuno para uma análise em detalhe da evolução do preceito, vide, para o efeito, LUÍS FÁBRICA, in “A Acção Popular no Projecto de Código do Processo nos Tribunais Administrativos”.

(2) Cfr., MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, in “Manual de Processo Administrativo”, 2º ed., Almedina, 2016, pág. 215.

(3) Sufragando esta concepção, cfr., VIEIRA DE ANDRADE, in “A Justiça Administrativa (Lições)”, 3ª ed., Coimbra, 2000, pág. 154. 

(4) MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, in op. cit., pág. 217.

(5) Idem.






Bibliografia:

1 - LUÍS FÁBRICA, “A Acção Popular no Projecto de Código do Processo nos Tribunais Administrativos”


2 - MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “Manual de Processo Administrativo”, 2º ed., Almedina, 2016;

3 - VIEIRA DE ANDRADE, “A Justiça Administrativa (Lições)”, 3ª ed., Coimbra, 2000;


Sem comentários:

Enviar um comentário