ESTATUTO JURÍDICO DOS CONTRAINTERESSADOS NO CONTENCIOSO
ADMINISTRATIVO
O Código
do Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante, CPTA)
estabelece, nos seus arts. 9º e 10º, quem pode figurar como autor/demandante
(legitimidade processual ativa) e quem pode figurar como réu/demandado
(legitimidade processual passiva) nas ações administrativas.
A
propósito da legitimidade passiva, que é aquela que aqui nos interessa, há que
olhar para o disposto na parte final do art. 10º/1 do CPTA, o qual refere que “cada ação deve ser proposta contra a outra
parte na relação material controvertida e, quando for caso disso, contra as
pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos do autor”.
A parte
final do art. 10º/1 do CPTA deve ser conjugada com o que se dispõe nos arts.
57º e 68º/2 do CPTA.
Diz-nos
o art. 57º, a propósito dos processos de impugnação de atos administrativos,
que “para além da entidade autora do ato
impugnado, são obrigatoriamente demandados os contrainteressados a quem o
provimento do processo impugnatório possa diretamente prejudicar ou que tenham
legítimo interesse na manutenção do ato impugnado e que possam ser identificados
em função da relação material em causa ou dos documentos contidos no processo
administrativo”.
O art.
68º/2, a propósito dos processos de condenação à prática de atos
administrativos legalmente devidos, dispõe que “para além da entidade responsável pela situação de ilegalidade, são
obrigatoriamente demandados os contrainteressados a quem a prática do ato
pretendido possa diretamente prejudicar ou que tenham legítimo interesse em que
ele não seja praticado e que possam ser identificados em função da relação
material em causa ou dos documentos contidos no processo administrativo”.
São,
portanto, estas três disposições da lei processual administrativa que conformam
o estatuto jurídico dos contrainteressados no contencioso administrativo.
Como
ensina o professor MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, contrainteressados são as “pessoas a quem a procedência da ação pode
prejudicar ou que têm interesse na manutenção da situação contra a qual se
insurge o autor” ou, dito por outras palavras, são “todos aqueles que, por terem visto ou poderem vir a ver a respetiva
situação jurídica definida pelo ato administrativo praticado ou a praticar, têm
o direito de não ser deixados à margem do processo em que se discute a questão
da subsistência ou da introdução na ordem jurídica do ato que lhes diz
respeito. Trata-se, pois, de assegurar que o processo não corra à revelia das
pessoas em cuja esfera jurídica ele se propõe introduzir efeitos”[1].
No mesmo
sentido, MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA escrevem que
os contrainteressados são “as pessoas que
serão diretamente desfavorecidas, nos seus direitos ou interesses pela
procedência da ação instaurada, do mesmo modo que o autor sairia favorecido por
isso”[2].
A
posição jurídica que os contrainteressados ocupam no contencioso administrativo
faz-nos repensar na visão/conceção tradicional que configurava todas as
decisões administrativas no âmbito de uma relação jurídica bilateral entre a
Administração Pública e um determinado e direto destinatário ou destinatários,
a qual dever ter-se por atualmente ultrapassada em muitos setores de atividade
do moderno Estado de bem-estar.
Em
diversos domínios, a atividade administrativa foi-se tornando cada vez mais
dotada de uma crescente multilateralidade, ao ponto de levar a melhor doutrina
(MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, PAULO OTERO e RUI CHANCERELLE DE MACHETE) a falar nas
chamadas “relações jurídicas poligonais,
triangulares, trilaterais, ou multipolares”.
Exemplo
típico de conflitos multipolares é o caso do vizinho que, com interesse na
manutenção do “status quo”, impugna
uma autorização/licença para construir atribuída a um determinado proprietário.
Foi
precisamente a propósito destas relações jurídicas poligonais que a figura do
contrainteressado ganhou uma especial importância na moderna dogmática
jusadministrativista.
Segundo
o professor PAULO OTERO[3],
a lei portuguesa cria em torno da participação processual dos
contrainteressados uma dupla situação de litisconsórcio necessário passivo. E
isto porque: i) por um lado, consagra um litisconsórcio necessário passivo
entre a Administração Pública e os contrainteressados; ii) por outro lado,
estabelece um litisconsórcio necessário passivo entre todos os
contrainteressados, pelo que todos eles devem ser chamados ao processo.
No mesmo
sentido, MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA escrevem que “os contrainteressados estão no processo na
qualidade de parte demandada em situação de litisconsórcio necessário passivo
com a «entidade autora do ato impugnado» e gozam do estatuto processual de
parte, assistindo-lhes, por via de regra ou como posição de princípio, os
mesmos direitos e deveres que a lei reconhece ou impõe àquela”[4].
Segundo
o professor PAULO OTERO, a intervenção dos contrainteressados no contencioso
administrativo português tem uma dupla função ou, se se preferir, uma função
mista: uma função subjetivista, que se funda na tutela de posições jurídicas
materiais e uma função objetivista, que se prende com a amplitude da eficácia
subjetiva do caso julgado e do efeito útil da decisão.
No que à
função subjetivista diz respeito, dir-se-á que a intervenção processual dos
contrainteressados se fundamenta primacialmente na defesa de interesses
(materiais) próprios e não na defesa do interesse público subjacente à
manutenção do ato impugnado.
A
intervenção processual dos contrainteressados não se orienta, assim, por
qualquer postura cujo fim seja auxiliar ou colaborar com a Administração na
defesa da validade do ato impugnado ou do interesse público que está subjacente
na sua manutenção. O critério teleológico da atuação processual do
contrainteressado é sempre a defesa dos respetivos interesses, isto sem
prejuízo de uma tal atuação poder ter efeitos reflexos.
No mesmo
sentido, RUI CHANCERELLE DE MACHETE, escreve que os contrainteressados “têm sempre um direito ou um interesse legalmente protegido a defender no processo
contencioso”[5].
A
intervenção processual dos contrainteressados, na sua função subjetivista,
encontra fundamento no direito fundamental de acesso à justiça que a
Constituição Portuguesa garante a todas as pessoas (cfr. art. 20º da CRP), no
direito a uma tutela jurisdicional efetiva dos administrados em sede de
contencioso administrativo (cfr. arts. 266º/1 e 268º/4 da CRP) e nos princípios
do contraditório da igualdade das partes no processo.
A
posição jurídica dos contrainteressados tutelada pela lei ordinária
corresponde, assim, à concretização de diversos imperativos constitucionais,
podendo mesmo dizer-se que deparamos aqui com a implementação legal de normas
sobre direitos fundamentais. Ora daqui decorre, segundo o professor PAULO
OTERO, que “sob pena de
inconstitucionalidade, o legislador (ordinário) se encontra proibido de
proceder a uma revogação pura e simples
das disposições legais que conformam o estatuto jurídico dos
contrainteressados ou a qualquer
alteração do regime do contencioso administrativo que suprima a intervenção
processual dos contrainteressados”. Mas aquele ilustre professor vai mais
longe e afirma mesmo que “se, por
hipótese, uma determinada ação administrativa terminar com uma decisão que diretamente cause prejuízos a
contrainteressados que nunca foram identificados ou mandados citar, o facto
destes últimos gozarem de uma posição jurídica fundada em direitos fundamentais
reconhecidos pela Constituição, além de lhes tornar inoponível esse caso julgado,
pode bem defender-se que a decisão judicial enferma de inconstitucionalidade
por violação direta de tais direitos fundamentais (o direito de acesso à
justiça e o direito a uma tutela jurisdicional efetiva dos contrainteressados)”[6].
No que
concerne à função objetivista da intervenção processual dos contrainteressados,
há a referir que, a existir uma decisão judicial de provimento que diretamente
prejudique terceiros e estes nunca tenham sido chamados ao processo, essa
decisão nunca lhes será oponível. Esses terceiros que não foram chamados a ter
qualquer intervenção processual não se encontram, assim, compreendidos no
âmbito de eficácia subjetiva do respetivo caso julgado, que o mesmo é dizer,
não se encontram vinculados a este.
Esta
solução fundamenta-se, uma vez mais, segundo o professor PAULO OTERO, “na garantia conferida pela Constituição ao
direito de acesso à justiça e ao direito a uma tutela jurisdicional efetiva.
De facto, esses direitos seriam
totalmente desrespeitados se aquele a quem não foi assegurada a possibilidade
de intervenção processual – designadamente pelo simples motivo de nunca ter
sido mandado citar – pudesse ser diretamente prejudicado pela decisão
judicial que desse provimento à pretensão do autor”. E, acrescenta ainda aquele
ilustre professor, os “direitos
fundamentais de natureza processual garantidos pela Constituição, não têm
apenas o sentido de abrir a via contenciosa aos particulares, dado que tais direitos permitem também limitar a
eficácia subjetiva das decisões judiciais, excluindo do âmbito dos seus efeitos
todos os particulares a quem não foi assegurada em termos efetivos a
possibilidade de intervenção processual”[7].
Mas a
intervenção processual dos contrainteressados na sua função objetivista
encontra ainda justificação, segundo PAULO OTERO, no valor da unidade da ordem
jurídica. Assim, refere aquele professor, “condicionando
o efeito útil da decisão judicial anulatória do ato recorrido à possível
intervenção dos contrainteressados no processo, pode também concluir-se que a
verdadeira busca da «paz jurídica» subjacente à atuação dos tribunais no
exercício da função jurisdicional do Estado apenas se consegue através de
decisões que garantam uma composição definitiva do litígio, tanto mais que se
mostra anómalo no contexto da unidade do sistema jurídico que um mesmo ato
jurídico esteja para uns anulado e para outros (isto é, para todos aqueles que
não tiveram possibilidade de intervenção processual) se deva considerar,
simultaneamente, não anulado e, por isso mesmo, gozando da eficácia decorrente
da presunção de legalidade”[8].
A falta
de citação e da intervenção processual dos contrainteressados nos processos
contenciosos em que estes deveriam intervir comporta algumas consequências.
Assim, o autor deve, na petição inicial, identificar os nomes, domicílios ou
sedes dos contrainteressados, sob pena de recusa do recebimento da petição pela
secretaria do tribunal (cfr. arts. 78º/2, al. b) e 80º/1, al. b) do CPTA).
Acresce que a falta de citação e de chamamento dos contrainteressados ao
processo gera uma situação de ilegitimidade passiva, a qual obsta ao
conhecimento do mérito da causa pelo tribunal, dado que não está
preenchido/verificado um pressuposto processual que é o da legitimidade,
havendo, por conseguinte, lugar a uma exceção dilatória (cfr. art. 89º/4, al.
e) do CPTA). Por fim, a decisão judicial que porventura venha a ser proferida à
revelia dos contrainteressados (seja porque não foram identificados pelo autor
na petição inicial e, consequentemente, não houve lugar à citação, seja porque
não lhes foi conferida a possibilidade de intervirem num processo que lhes
dizia respeito) não lhes é oponível, podendo estes, inclusivamente, interpor
recurso extraordinário de revisão da sentença (cfr. art. 155º/2 do CPTA).
[1] Cfr. ALMEIDA,
Mário Aroso de, “Manual de Processo
Administrativo”, 2ª Edição, Almedina, Coimbra, 2016, p. 252.
[2] Cfr. OLIVEIRA,
Mário Esteves de, e OLIVEIRA, Rodrigo Esteves de, “Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Estatuto dos
Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados – Volume I (Artigos 1º a 96º)”,
Almedina, Coimbra, 2006, anotação ao art. 57º do CPTA, p. 375.
[3] Cfr. OTERO, Paulo, “Os
contra-interessados em Contencioso Administrativo: fundamento, função e
determinação do universo em recurso contencioso de ato final de procedimento
concursal” in “Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares”, Coimbra,
2001, pp. 1078 e 1079.
[4] Cfr., ob.
cit. na nota 2, anotação ao art. 57º do CPTA, p. 376.
[5] Cfr. MACHETE,
Rui Chancerelle de, “A legitimidade dos contra-interessados nas ações administrativas
comuns e especiais” in “Estudos em Homenagem ao Professor Doutor
Marcello Caetano – No centenário do seu nascimento – Volume II”, Edição da
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra Editora, 2006, p.
617.
[6] Cfr., ob.
cit. na nota 3, pp. 1083 e 1084.
[8] Cfr., ob.
cit. na nota 3, p. 1087.
Bibliografia:
ALMEIDA, Mário Aroso de, “Manual de Processo Administrativo”, 2ª Edição, Almedina, Coimbra, 2016.
MACHETE, Rui Chancerelle de, “A legitimidade dos contra-interessados nas ações administrativas comuns e especiais” in “Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano – No centenário do seu nascimento – Volume II”, Edição da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra Editora, 2006, pp. 611 a 630.
OLIVEIRA, Mário Esteves de, e OLIVEIRA, Rodrigo Esteves de, “Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados – Volume I (Artigos 1º a 96º)”, Almedina, Coimbra, 2006.
OTERO, Paulo, “Os contra-interessados em Contencioso Administrativo: fundamento, função e determinação do universo em recurso contencioso de ato final de procedimento concursal” in “Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares”, Coimbra, 2001 .
RODRIGO DIAS (ALUNO Nº 24472)
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