domingo, 11 de dezembro de 2016

ESTATUTO JURÍDICO DOS CONTRAINTERESSADOS NO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO

ESTATUTO JURÍDICO DOS CONTRAINTERESSADOS NO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO

O Código do Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante, CPTA) estabelece, nos seus arts. 9º e 10º, quem pode figurar como autor/demandante (legitimidade processual ativa) e quem pode figurar como réu/demandado (legitimidade processual passiva) nas ações administrativas.
A propósito da legitimidade passiva, que é aquela que aqui nos interessa, há que olhar para o disposto na parte final do art. 10º/1 do CPTA, o qual refere que “cada ação deve ser proposta contra a outra parte na relação material controvertida e, quando for caso disso, contra as pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos do autor”.  
A parte final do art. 10º/1 do CPTA deve ser conjugada com o que se dispõe nos arts. 57º e 68º/2 do CPTA.
Diz-nos o art. 57º, a propósito dos processos de impugnação de atos administrativos, que “para além da entidade autora do ato impugnado, são obrigatoriamente demandados os contrainteressados a quem o provimento do processo impugnatório possa diretamente prejudicar ou que tenham legítimo interesse na manutenção do ato impugnado e que possam ser identificados em função da relação material em causa ou dos documentos contidos no processo administrativo”.
O art. 68º/2, a propósito dos processos de condenação à prática de atos administrativos legalmente devidos, dispõe que “para além da entidade responsável pela situação de ilegalidade, são obrigatoriamente demandados os contrainteressados a quem a prática do ato pretendido possa diretamente prejudicar ou que tenham legítimo interesse em que ele não seja praticado e que possam ser identificados em função da relação material em causa ou dos documentos contidos no processo administrativo”.
São, portanto, estas três disposições da lei processual administrativa que conformam o estatuto jurídico dos contrainteressados no contencioso administrativo.
Como ensina o professor MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, contrainteressados são as “pessoas a quem a procedência da ação pode prejudicar ou que têm interesse na manutenção da situação contra a qual se insurge o autor” ou, dito por outras palavras, são “todos aqueles que, por terem visto ou poderem vir a ver a respetiva situação jurídica definida pelo ato administrativo praticado ou a praticar, têm o direito de não ser deixados à margem do processo em que se discute a questão da subsistência ou da introdução na ordem jurídica do ato que lhes diz respeito. Trata-se, pois, de assegurar que o processo não corra à revelia das pessoas em cuja esfera jurídica ele se propõe introduzir efeitos[1].
No mesmo sentido, MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA escrevem que os contrainteressados são “as pessoas que serão diretamente desfavorecidas, nos seus direitos ou interesses pela procedência da ação instaurada, do mesmo modo que o autor sairia favorecido por isso[2].
A posição jurídica que os contrainteressados ocupam no contencioso administrativo faz-nos repensar na visão/conceção tradicional que configurava todas as decisões administrativas no âmbito de uma relação jurídica bilateral entre a Administração Pública e um determinado e direto destinatário ou destinatários, a qual dever ter-se por atualmente ultrapassada em muitos setores de atividade do moderno Estado de bem-estar.
Em diversos domínios, a atividade administrativa foi-se tornando cada vez mais dotada de uma crescente multilateralidade, ao ponto de levar a melhor doutrina (MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, PAULO OTERO e RUI CHANCERELLE DE MACHETE) a falar nas chamadas “relações jurídicas poligonais, triangulares, trilaterais, ou multipolares”.
Exemplo típico de conflitos multipolares é o caso do vizinho que, com interesse na manutenção do “status quo”, impugna uma autorização/licença para construir atribuída a um determinado proprietário.
Foi precisamente a propósito destas relações jurídicas poligonais que a figura do contrainteressado ganhou uma especial importância na moderna dogmática jusadministrativista.
Segundo o professor PAULO OTERO[3], a lei portuguesa cria em torno da participação processual dos contrainteressados uma dupla situação de litisconsórcio necessário passivo. E isto porque: i) por um lado, consagra um litisconsórcio necessário passivo entre a Administração Pública e os contrainteressados; ii) por outro lado, estabelece um litisconsórcio necessário passivo entre todos os contrainteressados, pelo que todos eles devem ser chamados ao processo.
No mesmo sentido, MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA escrevem que “os contrainteressados estão no processo na qualidade de parte demandada em situação de litisconsórcio necessário passivo com a «entidade autora do ato impugnado» e gozam do estatuto processual de parte, assistindo-lhes, por via de regra ou como posição de princípio, os mesmos direitos e deveres que a lei reconhece ou impõe àquela[4].
Segundo o professor PAULO OTERO, a intervenção dos contrainteressados no contencioso administrativo português tem uma dupla função ou, se se preferir, uma função mista: uma função subjetivista, que se funda na tutela de posições jurídicas materiais e uma função objetivista, que se prende com a amplitude da eficácia subjetiva do caso julgado e do efeito útil da decisão.
No que à função subjetivista diz respeito, dir-se-á que a intervenção processual dos contrainteressados se fundamenta primacialmente na defesa de interesses (materiais) próprios e não na defesa do interesse público subjacente à manutenção do ato impugnado.
A intervenção processual dos contrainteressados não se orienta, assim, por qualquer postura cujo fim seja auxiliar ou colaborar com a Administração na defesa da validade do ato impugnado ou do interesse público que está subjacente na sua manutenção. O critério teleológico da atuação processual do contrainteressado é sempre a defesa dos respetivos interesses, isto sem prejuízo de uma tal atuação poder ter efeitos reflexos.
No mesmo sentido, RUI CHANCERELLE DE MACHETE, escreve que os contrainteressados “têm sempre um direito ou um interesse legalmente protegido a defender no processo contencioso[5].
A intervenção processual dos contrainteressados, na sua função subjetivista, encontra fundamento no direito fundamental de acesso à justiça que a Constituição Portuguesa garante a todas as pessoas (cfr. art. 20º da CRP), no direito a uma tutela jurisdicional efetiva dos administrados em sede de contencioso administrativo (cfr. arts. 266º/1 e 268º/4 da CRP) e nos princípios do contraditório da igualdade das partes no processo.
A posição jurídica dos contrainteressados tutelada pela lei ordinária corresponde, assim, à concretização de diversos imperativos constitucionais, podendo mesmo dizer-se que deparamos aqui com a implementação legal de normas sobre direitos fundamentais. Ora daqui decorre, segundo o professor PAULO OTERO, que “sob pena de inconstitucionalidade, o legislador (ordinário) se encontra proibido de proceder a uma revogação pura e simples das disposições legais que conformam o estatuto jurídico dos contrainteressados ou a qualquer alteração do regime do contencioso administrativo que suprima a intervenção processual dos contrainteressados”. Mas aquele ilustre professor vai mais longe e afirma mesmo que “se, por hipótese, uma determinada ação administrativa terminar com uma decisão que diretamente cause prejuízos a contrainteressados que nunca foram identificados ou mandados citar, o facto destes últimos gozarem de uma posição jurídica fundada em direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição, além de lhes tornar inoponível esse caso julgado, pode bem defender-se que a decisão judicial enferma de inconstitucionalidade por violação direta de tais direitos fundamentais (o direito de acesso à justiça e o direito a uma tutela jurisdicional efetiva dos contrainteressados)[6].
No que concerne à função objetivista da intervenção processual dos contrainteressados, há a referir que, a existir uma decisão judicial de provimento que diretamente prejudique terceiros e estes nunca tenham sido chamados ao processo, essa decisão nunca lhes será oponível. Esses terceiros que não foram chamados a ter qualquer intervenção processual não se encontram, assim, compreendidos no âmbito de eficácia subjetiva do respetivo caso julgado, que o mesmo é dizer, não se encontram vinculados a este.
Esta solução fundamenta-se, uma vez mais, segundo o professor PAULO OTERO, “na garantia conferida pela Constituição ao direito de acesso à justiça e ao direito a uma tutela jurisdicional efetiva. De facto, esses direitos seriam totalmente desrespeitados se aquele a quem não foi assegurada a possibilidade de intervenção processual – designadamente pelo simples motivo de nunca ter sido mandado citar – pudesse ser diretamente prejudicado pela decisão judicial que desse provimento à pretensão do autor”. E, acrescenta ainda aquele ilustre professor, os “direitos fundamentais de natureza processual garantidos pela Constituição, não têm apenas o sentido de abrir a via contenciosa aos particulares, dado que tais direitos permitem também limitar a eficácia subjetiva das decisões judiciais, excluindo do âmbito dos seus efeitos todos os particulares a quem não foi assegurada em termos efetivos a possibilidade de intervenção processual[7].
Mas a intervenção processual dos contrainteressados na sua função objetivista encontra ainda justificação, segundo PAULO OTERO, no valor da unidade da ordem jurídica. Assim, refere aquele professor, “condicionando o efeito útil da decisão judicial anulatória do ato recorrido à possível intervenção dos contrainteressados no processo, pode também concluir-se que a verdadeira busca da «paz jurídica» subjacente à atuação dos tribunais no exercício da função jurisdicional do Estado apenas se consegue através de decisões que garantam uma composição definitiva do litígio, tanto mais que se mostra anómalo no contexto da unidade do sistema jurídico que um mesmo ato jurídico esteja para uns anulado e para outros (isto é, para todos aqueles que não tiveram possibilidade de intervenção processual) se deva considerar, simultaneamente, não anulado e, por isso mesmo, gozando da eficácia decorrente da presunção de legalidade[8].
A falta de citação e da intervenção processual dos contrainteressados nos processos contenciosos em que estes deveriam intervir comporta algumas consequências. Assim, o autor deve, na petição inicial, identificar os nomes, domicílios ou sedes dos contrainteressados, sob pena de recusa do recebimento da petição pela secretaria do tribunal (cfr. arts. 78º/2, al. b) e 80º/1, al. b) do CPTA). Acresce que a falta de citação e de chamamento dos contrainteressados ao processo gera uma situação de ilegitimidade passiva, a qual obsta ao conhecimento do mérito da causa pelo tribunal, dado que não está preenchido/verificado um pressuposto processual que é o da legitimidade, havendo, por conseguinte, lugar a uma exceção dilatória (cfr. art. 89º/4, al. e) do CPTA). Por fim, a decisão judicial que porventura venha a ser proferida à revelia dos contrainteressados (seja porque não foram identificados pelo autor na petição inicial e, consequentemente, não houve lugar à citação, seja porque não lhes foi conferida a possibilidade de intervirem num processo que lhes dizia respeito) não lhes é oponível, podendo estes, inclusivamente, interpor recurso extraordinário de revisão da sentença (cfr. art. 155º/2 do CPTA).


[1] Cfr. ALMEIDA, Mário Aroso de, “Manual de Processo Administrativo”, 2ª Edição, Almedina, Coimbra, 2016, p. 252. 
[2] Cfr. OLIVEIRA, Mário Esteves de, e OLIVEIRA, Rodrigo Esteves de, “Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados – Volume I (Artigos 1º a 96º)”, Almedina, Coimbra, 2006, anotação ao art. 57º do CPTA, p. 375.
[3] Cfr. OTERO, Paulo, “Os contra-interessados em Contencioso Administrativo: fundamento, função e determinação do universo em recurso contencioso de ato final de procedimento concursal” inEstudos em Homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares”, Coimbra, 2001, pp. 1078 e 1079.
[4] Cfr., ob. cit. na nota 2, anotação ao art. 57º do CPTA, p. 376.
[5] Cfr. MACHETE, Rui Chancerelle de, “A legitimidade dos contra-interessados nas ações administrativas comuns e especiais” inEstudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano – No centenário do seu nascimento – Volume II”, Edição da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra Editora, 2006, p. 617. 
[6] Cfr., ob. cit. na nota 3, pp. 1083 e 1084.
[7] Cfr., ob. cit. na nota 3, pp. 1085 e 1086.
[8] Cfr., ob. cit. na nota 3, p. 1087. 

Bibliografia:


ALMEIDA, Mário Aroso de, “Manual de Processo Administrativo”, 2ª Edição, Almedina, Coimbra, 2016.

MACHETE, Rui Chancerelle de, “A legitimidade dos contra-interessados nas ações administrativas comuns e especiais” in “Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano – No centenário do seu nascimento – Volume II”, Edição da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra Editora, 2006, pp. 611 a 630. 

OLIVEIRA, Mário Esteves de, e OLIVEIRA, Rodrigo Esteves de, “Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados – Volume I (Artigos 1º a 96º)”, Almedina, Coimbra, 2006. 

OTERO, Paulo, “Os contra-interessados em Contencioso Administrativo: fundamento, função e determinação do universo em recurso contencioso de ato final de procedimento concursal” in “Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares”, Coimbra, 2001 .


RODRIGO DIAS (ALUNO Nº 24472)

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